Compartilhe
Gordura saturada é mesmo a grande vilã que todos falam?
Escrito por
Thiago Midlej
Publicado em
22/4/2021
Nos anos 50, tentando explicar o aumento expressivo de doenças coronárias nos países ocidentais, pesquisas de nutrição e saúde focaram em diversas hipóteses do que seria a “dieta do coração”. Elas incluíam os efeitos prejudiciais da gordura na dieta (em especial da gordura saturada). Associado a isso, foi levantada a hipótese de que a dieta do Mediterrâneo (pobre em gorduras saturadas) poderia explicar por que indivíduos nos Estados Unidos e na Inglaterra, por exemplo, eram mais propensos a terem doença cardiovascular (DVC) em contraste àqueles que viviam em países europeus, em volta do Mediterrâneo. A partir daí, a gordura saturada, presente em alimentos como carnes vermelhas, começou a ser tratada como um dos grandes vilões da saúde cardiovascular.
Na década de 80, com o objetivo de reduzir o risco de doença cardiovascular, a recomendação era que a gordura saturada fosse limitada a menos de 10% do total de calorias ingeridas. A atual diretriz da SBC recomenda o seguinte:
Contudo, este tema ainda é polêmico. Algumas meta-análises não encontraram evidência que a redução no consumo de gorduras saturadas leve à diminuição na incidência ou mortalidade por doença cardiovascular. Estudo recente publicado no JACC também questiona a associação entre consumo de gorduras saturadas e risco cardiovascular.
Os ácidos graxos saturados são um grupo heterogêneo de nutrientes e podem ser classificados de acordo com o tamanho de sua cadeia de carbono (curta, média, longa e muito longa), pela presença ou não do ramo metil nesta cadeia de carbono ou, ainda, por sua origem endógena ou exógena.
A maior fonte alimentícia de ácidos graxos de cadeia curta são os laticínios. Os ácidos graxos de cadeia de média e longa são predominantemente encontrados na carne vermelha, laticínios e óleos vegetais.
Alguns estudos grandes e bem desenhados demonstraram que substituir parte da gordura alimentar por carboidratos não foi associado à diminuição de risco cardiovascular e pode até estar relacionado a um aumento total de mortalidade. Além disso, revisões sistemáticas da literatura não mostraram nenhuma associação significativa entre consumo de gordura saturada e doença arterial coronária ou mortalidade. Alguns desses estudos (conduzidos nos Estados Unidos e Europa) até sugerem diminuição do risco de AVC com alto consumo de gorduras saturadas.
Dados de 15 estudos prospectivos de coorte, que acompanharam mais de 33 mil pacientes, sem DCV, demonstraram que biomarcadores de ácidos graxos de cadeia muito longa não foram associados com DCV e seus níveis plasmáticos foram inversamente associados a DCV.
No estudo Pure, 135.000 pessoas (a maioria sem DCV), realizado em 18 países, foi observado que o consumo elevado de todos os tipos de gorduras (saturada, monoinsaturada e poli-insaturada), foi relacionado à diminuição do risco de morte e teve associação neutra com doença cardiovascular. Por outro lado, o consumo elevado de carboidrato foi associado com aumento do risco de morte, porém não com risco de doença cardiovascular. Este estudo também demonstrou que indivíduos no percentil com maior ingestão de gordura saturada (aproximadamente 14% do total diário de calorias) tinham menor risco de AVC. Um estudo mais recente, que acompanhou por cerca de 10 anos quase 200.000 participantes do Biobank Inglaterra, não demonstrou evidência de que a ingestão de gordura saturada foi associada com incidentes cardiovasculares. O estudo WHI, que avaliou quase 49.000 mulheres, demonstrou que seguir uma dieta com redução de gorduras (sendo 9,5% de gordura saturada) por 8 anos, não alterou o risco de IAM ou AVC.
Já a substituição de gordura saturada pela gordura poli-insaturada foi associada ao aumento de DCV. O consumo de grande quantidade de carboidratos (principalmente amido e açúcar) também foi associado a elevação do risco cardiovascular e mortalidade. Essas observações sugerem que restringir o consumo de carboidratos, particularmente os refinados, pode ser mais relevante hoje para diminuir o risco de mortalidade em alguns indivíduos do que limitar consumo de gordura saturada.
Mas, o que podemos falar dos exames laboratoriais? E o LDL plasmático? É evidente que partículas do LDL colesterol estejam envolvidas na DCV, mas a redução do LDL induzido pela dieta não pode ser inferida como resultado de benefícios cardiovasculares. É preciso avaliar também outros efeitos biológicos que podem acompanhar essa redução. Por exemplo, a dieta do mediterrâneo reduz o risco cardiovascular sem, no entanto, reduzir LDL colesterol. Além disso, a inibição da SGLT2 reduz eventos cardiovasculares, apesar de aumentar os níveis de LDL colesterol. O estudo PURE também mostrou que associação entre gordura saturada e DCV não tem relação direta com LDL plasmático, mas estaria mais relacionada à razão de apo B e apo A. O consumo mais baixo de gordura saturada leva à diminuição, principalmente, de partículas grandes de LDL (menos aterogênicas) e provoca a redução simultânea do HDL-C. Variantes genéticas podem modular a relação da dieta com gordura saturada e biomarcadores cardiovasculares. Alguns genes podem acarretar maior elevação de gordura plasmática em resposta à dieta do que outros. Assim, conforme estudos randomizados têm mostrado, alterações nos níveis de colesterol total e LDL não refletem o impacto da mudança dietética da gordura saturada no risco cardiovascular. Desta forma, torna-se necessário desenvolver e implementar novos marcadores para estudar essa associação e monitorar o efeito induzido pela dieta na pesquisa e prática clínica.
Estudos recentes, segundo a publicação, sugerem que a melhor dieta para controle de peso e controle glicêmico, depende em parte de tolerância a carboidratos do indivíduo, determinada pela resistência e capacidade de secreção de insulina.
O grau de processamento dos alimentos também deve ser levado em consideração, visto que óleos e gorduras mais processados podem conter ácidos graxos hidrogenados em sua composição. A temperatura de cozimento também é importante, pois o tratamento de óleos a temperaturas muito elevadas na presença de metais, pode levar à oxidação e formação de contaminantes. Possíveis efeitos na saúde da gordura saturada dependem da interação de compostos naturais do produto com componentes introduzidos no processamento. Os alimentos são formados por uma matriz complexa de diversos nutrientes e componentes como proteínas, micronutrientes, fosfolipídios, probióticos, os quais também exercem papel relevante na saúde e, por isso, seus efeitos não podem ser unicamente atribuídos às gorduras saturadas.
O que sabemos é que iogurtes e queijos são inversamente associados com risco cardiovascular. A gordura derivada do leite pode também ser protetora contra DM tipo 2. Chocolate rico em cacau (dark) tem múltiplos benefícios na saúde, incluindo efeitos antioxidantes, anti-hipertensivos, anti-inflamatórios, e antitrombótico bem como prevenção para doença cardiovascular e DM tipo 2. Embora a ingestão de carne vermelha processada tenha associação com a elevação de risco cardiovascular, o mesmo não acontece com carnes não processadas, indicando que é improvável que a gordura da carne seja a responsável por essa associação.
Desta forma, os autores do artigo do JACC chamam a atenção para o fato de que o foco na redução gordura saturada fez com que governos, consumidores e a indústria alimentícia fossem consequentemente guiados a aumentar o consumo de alimentos ricos em carboidratos refinados e açúcares. Isso provocou a redução no consumo de alimentos de alta densidade nutricional, como laticínios e carnes, importantes para a prevenção de doenças.
Os autores recomendam que novas diretrizes sejam elaboradas baseadas em alimentos, ao invés de nutrientes e que a redução de gordura saturada deve ser reconsiderada. Trazer o foco para a diminuição no consumo de alimentos processados para reduzir níveis de contaminantes também pode trazer benefícios à saúde. Novas recomendações deveriam enfatizar estratégias que traduzam para o público uma compreensível, consistente e robusta recomendação de padrões dietéticos saudáveis.
Referência: Saturated Fats and Health: A Reassessment and Proposal for Food-Based Recommendations: JACC VOL. 76, NO. 7, 2020, Arne Astrup MD, DMSc at al.
OBS: Texto escrito em conjunto com a nutricionista Juliana Gropp.