Pacientes com lesão de tronco de coronária esquerda: qual estratégia de revascularização escolher?

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Pacientes com lesão de tronco de coronária esquerda: qual estratégia de revascularização escolher?

Nos anos 70 e 80, estudos randomizados que incluíram aproximadamente 200 pacientes com lesão de tronco da coronária esquerda (TCE) mostraram que a revascularização cirúrgica era superior ao tratamento clínico da época. Desde então, a cirurgia tem sido considerada o padrão-ouro para esses pacientes.

Com o surgimento da primeira angioplastia com balão em 1977 e com a evolução das técnicas e materiais, incluindo inicialmente os stents convencionais e posteriormente os stents farmacológicos, associado aos avanços na terapia farmacológica adjunta, a intervenção coronária percutânea (ICP) no TCE passou a ser uma alternativa ao tratamento cirúrgico.

Mas qual das duas opções devo indicar para meu paciente?

Para responder a essa pergunta, vamos fazer um breve resumo dos principais estudos randomizados que compararam cirurgia com angioplastia utilizando stents farmacológicos (DES): SYNTAX, NOBLE e EXCEL.

Estudo SYNTAX

O Estudo SYNTAX comparou de forma prospectiva e randomizada a ICP com DES de primeira geração vs revascularização cirúrgica em pacientes multiarteriais com ou sem comprometimento do TCE. Na sub-análise de 705 pacientes com lesão de TCE, ao final de 5 anos de seguimento, a mortalidade total, mortalidade cardíaca e desfecho composto de mortalidade total, infarto do miocárdio e AVC foram semelhantes entre os pacientes tratados por ICP e aqueles tratados por revascularização cirúrgica, porém este último grupo apresentou maiores taxas de AVC e menores taxa de revascularização do vaso-alvo. Quando analisados de acordo com a complexidade anatômica, no subgrupo com Syntax Score baixo (<23) e moderado (23-32), o desfecho composto de mortalidade total, IAM, AVC e nova revascularização foi semelhante, exceto no subgrupo com Syntax Score alto (>32), onde a revascularização cirúrgica apresentou maior benefício, principalmente as custas de redução de revascularização do vaso-alvo. No estudo de sobrevida de 10 anos de seguimento, não houve diferença de mortalidade entre os pacientes com lesão de TCE tratados com angioplastia ou cirurgia.

Estudo NOBLE

O estudo NOBLE (discutido neste post), um estudo de não-inferioridade, randomizou 1200 pacientes em 36 centros participantes com lesão de TCE de qualquer complexidade para angioplastia com DES revestido de Biolimus versus revascularização cirúrgica. Ao final de aproximadamente 5 anos de seguimento, os pacientes submetidos ao tratamento percutâneo apresentaram maiores taxas de evento composto por óbito, IAM (o estudo não incluiu IAM peri-procedimento), AVC e nova revascularização, quando comparados ao grupo cirúrgico (28% x 19%), as custas de IAM (8% x 3%) e nova revascularização (17% x 10%), sem diferenças em relação a AVC e mortalidade geral ou cardiovascular.

Estudo EXCEL

O Estudo EXCEL, também de não-inferioridade randomizou 1900 pacientes em 131 centros com lesão de TCE de baixa ou moderada complexidade (Syntax Score < 33) para ICP com DES revestido de everolimus versus tratamento cirúrgico. Neste estudo, o tratamento percutâneo foi não-inferior ao tratamento cirúrgico no desfecho primário composto por óbito, IAM (peri-procedimento e espontâneo) e AVC (15,4% x 14,7%) e no desfecho secundário composto por óbito, IAM, AVC e nova revascularização ao final de 3 anos de seguimento (23% x 19%). Os resultados foram semelhantes tanto na análise por “intenção de tratar” como na “por protocolo”.

Na análise secundária do seguimento de 5 anos do EXCEL (apresentado e publicado durante o congresso americano de cardiologia intervencionista de 2019), o desfecho primário ocorreu em 22% dos pacientes do grupo angioplastia e 19% no grupo cirurgia, sem diferença estatisticamente significante. Com relação aos desfechos secundários, os pacientes submetidos a angioplastia apresentaram maiores taxas do desfecho composto por óbito, IAM, AVC e nova revascularização (31% x 25%), nova revascularização (17% x 10%) e, diferentemente de estudos prévios, maior mortalidade (13% x 10%), as custas de morte não cardiovascular. Não houve diferença em relação a AVC e IAM, porém IAM peri-procedimento foi mais frequente no grupo cirúrgico e IAM espontâneo no grupo percutâneo.

Controvérsias em torno do EXCEL

Semanas seguintes, durante o congresso europeu de cirurgia cardíaca, o cirurgião cardíaco David Taggart, um dos autores e presidente do comitê cirúrgico do EXCEL fez duras críticas publicamente aos resultados de 5 anos do estudo, alegando que os dados haviam sido manipulados pelos autores, que a definição de IAM tinha sido modificada durante o estudo, que a maior mortalidade no grupo ICP não tinha sido enfatizada e que não concordava com os resultados apresentados, retirando seu nome da publicação. O fato saiu do campo científico e virou até uma matéria produzida pela BBC de Londres pondo em cheque os resultados do EXCEL, levando a Sociedade Europeia de Cirurgia Cardíaca (EACTS) a retirar o apoio sobre o capítulo de lesão de TCE da Diretriz Europeia de Revascularização do Miocárdio de 2018. E em janeiro de 2020, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular emitiu uma nota apoiando a decisão da EACTS.

Interessante notar que a definição pré-especificada de IAM peri-procedimento utilizada no desfecho primário desde o início do estudo (a qual tinha consentimento do comitê cirúrgico e de cardiologistas intervencionistas) não foi a definição universal do infarto, mas a definição da SCAI, que utiliza o mesmo ponto de corte do valor de CKMB tanto para cirurgia como para angioplastia. Essa definição foi utilizada nos resultados de seguimento de 3 anos (na época não questionada pelo Dr Taggart) e agora no de 5 anos. Além disso, uma análise publicada pelos autores do EXCEL, incluindo o próprio Dr Taggart, mostrou que a ocorrência de IAM peri-procedimento utilizando a definição do EXCEL e não a universal de IAM estava associado a um aumento de mortalidade tanto para o grupo angioplastia como para o grupo cirúrgico e que valores menores ao ponte de corte não tinham associação com sobrevida.

Outro ponto colocado em questão foi a maior mortalidade por todas as causas no grupo angioplastia, o que diferiu dos demais estudos randomizados e que teria sido pouco enfatizado. O que chama atenção é que quando analisamos as causas, essa maior mortalidade ocorreu principalmente as custas de morte não-cardiovascular. Embora mortalidade por todas as causas seja um desfecho de extrema importância, como o seguimento de 5 anos é uma análise secundária e o estudo não tem poder adequado para avaliar os desfechos isoladamente, pode ser que essa diferença tenha ocorrido ao acaso.

Combinando os resultados dos estudos

Para tirar essa dúvida, em março de 2020 foi realizada uma revisão sistemática e metanálise dos estudos randomizados com pelo menos 5 anos de seguimento, comparando cirurgia e angioplastia com stent farmacológico em pacientes com lesão de TCE. Cinco estudos randomizados foram incluídos na análise, com aproximadamente 4600 pacientes e seguimento médio de 5,5 anos. O desfecho primário foi morte por todas as causas e os secundários morte cardiovascular, IAM, AVC e necessidade de nova revascularização.

Com relação a mortalidade, não houve diferença entre angioplastia com stent farmacológico e cirurgia, nem em relação a morte cardiovascular, IAM e AVC. O grupo cirurgia apresentou maiores taxas de IAM relacionados ao procedimento, enquanto que o grupo angioplastia maiores taxas de IAM não relacionado ao procedimento e necessidade de nova revascularização.

Observação: a metanálise citada não foi feita com os dados individuais dos estudos mas sim com os resultados gerais de cada um deles. A metanálise com dados individuais ainda está por vir.

Aspectos técnicos dos procedimentos e outros desfechos secundários

Tanto no NOBLE como no EXCEL, para o tratamento percutâneo do TCE foi utilizada a técnica de 1 stent em aproximadamente 2/3 dos pacientes e em 75% foi utilizado IVUS.

Com relação ao tratamento cirúrgico, CEC foi utilizada em 85% dos pacientes do NOBLE e em 70% do EXCEL e mamária bilateral em 8% e 30%, respectivamente. A mortalidade cirúrgica em 30 dias em ambos os estudos foi de 1%, resultado de difícil reprodução na maioria dos centros do Brasil. Para se ter uma idéia, segundo dados do DATASUS, a taxa de mortalidade de revascularização miocárdica eletiva com ou sem CEC no Brasil no período de 2008 a 2019 foi de 4,5%, variando de 4,0 a 7,5% entre as regiões.

Outros desfechos intra-hospitalares secundários de menor importância mas que também devem ser considerados na tomada de decisão é necessidade de reoperação por sangramento em 4% dos pacientes cirúrgicos, 17% e 28% de transfusão sanguínea no EXCEL e NOBLE e ocorrência de 2% de deiscência de esterno 2%.

Considerações finais

Devemos lembrar que os resultados desses estudos servem para pacientes que apresentam condições para ambas as estratégias e que o Heart Team considerou que os tratamentos são equiparáveis. No entanto, algumas características pesam a favor de um ou de outro tratamento.

Pacientes com lesão de TCE isolado ou associado a lesões de menor complexidade em 1 ou 2 vasos, múltiplas comorbidades ou alto risco cirúrgico (idade avançada, DPOC, cirurgia cardíaca prévia, AVC prévio) talvez se beneficiem do tratamento percutâneo, ao passo que em pacientes com disfunção ventricular, diabetes, contra-indicação a dupla antiagregação plaquetária a longo prazo, jovens, com necessidade de outros procedimentos cirúrgicos concomitantes ou lesões complexas multiarteriais associadas (calcificação importante, oclusões crônicas, reestenose de stent) o tratamento cirúrgico passa a ser uma melhor opção.

Mas e quando os dois métodos de revascularização são factíveis?

Com os dados disponíveis até o momento, pacientes com lesão de TCE, submetidos a angioplastia com stent farmacológico ou revascularização cirúrgica apresentam taxas de mortalidade e AVC semelhantes em até 5 anos de seguimento. Pacientes tratados cirurgicamente apresentam maiores taxas de IAM e complicações peri-procedimentos e menores taxas de IAM espontâneo e necessidade de nova revascularização a longo prazo. Resta saber se as diferenças das curvas de evento vão se manter, divergir ou atenuar no seguimento de 10 anos, uma vez que a patência dos enxertos venosos nesse período é menor que 50%.

Resumo da ópera

A angioplastia com stent farmacológico no TCE é um procedimento menos invasivo, de recuperação mais rápida, com menores taxas de IAM e complicação peri-procedimento quando comparada a cirurgia de revascularização convencional, porém o “preço a ser pago” é uma maior taxa de IAM espontâneo e necessidade de nova revascularização a longo prazo. No entanto, nem todos os pacientes tratados cirurgicamente terão esse benefício a longo prazo. A cada 20 a 30 pacientes operados, um deles terá o benefício da prevenção de IAM e a cada 15 pacientes, um terá uma nova revascularização evitada.

De posse dessas informações e considerando a expertise e os resultados da equipe de cardiologia intervencionista e cirurgia cardíaca local, o Heart Team e o paciente poderão optar pela estratégia de revascularização mais adequada.