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A última diretriz de tratamento de fibrilação atrial (FA) da ESC publicada recentemente, entre outras atualizações, traz recomendação do uso do escore CHA 2 DS 2 -VA para avaliação de risco de fenômenos embólicos e decisão sobre a terapia anticoagulante. Esse novo escore exclui o sexo feminino como fator de risco em pacientes com FA, seguindo últimas diretrizes canadense, australiana e japonesa que não usam o sexo feminino como fator de risco. Qual é o propósito dessa mudança?
As pontuações de risco de características embólicas em pacientes com FA passaram por mudanças ao longo do tempo. Quando o CHADS₂ foi publicado em 2001, apesar de simples, apresentava limitações por não incluir fatores de risco importantes para acidente vascular cerebral (AVC), como idade entre 64 e 75 anos, histórico de infarto, presença de doença arterial periférica e aterosclerose aórtica. Nesse contexto, novos fatores de risco para AVC foram validados e incluídos no CHA₂DS₂-VASc, que passou a ser o escore mais recomendado e utilizado na prática clínica.
A pontuação CHA₂DS₂-VASc também é alvo de críticas. Apesar de sua simplicidade, apresenta desempenho modesto para previsão em pacientes de alto risco que sofrem AVC, com índice de concordância em torno de 0,60–0,65. Além disso, mostra desempenho abaixo do ideal em algumas situações, como em pacientes com doença renal crônica. Outro ponto importante é que, baseado em estudos publicados há mais de uma década, o escore CHA₂DS₂-VASc inclui o sexo feminino como fator de risco. Esse dado é questionado por vários trabalhos mais recentes.
Um trabalho sueco de 2012 mostrou que, apesar do AVC ter ocorrido mais em mulheres (6,2% v 4,2% ao ano, P < 0,0001), quando pacientes do sexo feminino de baixo risco pelo CHADS2 (0-1 pontos) foram estratificados pelo CHA2DS2-VASc, não houve uma maior incidência de AVC do que em homens com pontuações CHA2DS2-VASc de 2 ou menos. Outro estudo, publicado esse ano, utilizando o registro finlandês (Finnish AntiCoagulation in Atrial Fibrillation - FinACAF) mostrou que a associação entre sexo feminino e taxa de AVC diminuiu e se tornou não significativa ao longo do período do estudo de 2007 a 2018. Além disso, em pacientes de risco baixo e moderado, o sexo feminino não foi associado a uma taxa mais alta de AVC.
Somando mais evidências nesse contexto, foi publicado em setembro deste ano um estudo de coorte populacional de 16 anos no Reino Unido. Durante um acompanhamento total de 431.086 pacientes-ano, as mulheres tiveram uma taxa menor de desfecho primário (composto por mortalidade por todas as causas, AVC isquêmico ou tromboembolismo arterial), com HR ajustado de 0,89 em comparação aos homens (intervalo de confiança [IC] de 95%: 0,87 a 0,92; P < 0,001); Não foram identificadas diferenças entre mulheres e homens para desfechos secundários de AVC isquêmico ou tromboembolismo arterial (HR ajustado 1,00, IC de 95% 0,94–1,07; P = 0,87), qualquer acidente vascular cerebral ou tromboembolia (HR ajustado 1,02, IC de 95% 0,96–1,07; P = 0,58) e demência vascular (HR ajustado 1,13, IC de 95% 0,97–1,32; P = 0,11); O estudo também mostrou que os escores de risco clínico foram apenas preditores modestos de resultados, sendo o CHA₂DS₂-VA (excluindo o gênero feminino) superior ao CHA₂DS₂-VASc para desfechos primários nesta população (área sob a curva ROC 0,651 vs. 0,639; P < 0,001) e nenhuma interação com gênero (P = 0,45).
A diretriz da ESC deste ano ainda aponta que a inclusão do gênero dificulta a prática clínica, pois omite indivíduos que se identificam como não binários, transgêneros ou que estão em terapia hormonal de afirmação de gênero.
Em resumo, as evidências mais recentes entendem o sexo feminino mais como um modificador de risco do que propriamente um fator de risco de eventos tromboembólicos. Expõem, ainda, limitações dos escores já validados e abrem espaço para escores futuros com melhor capacidade preditiva de risco. Um exemplo é o escore ABC-AF, que incorpora biomarcadores como NT-pro BNP, troponina cardíaca T e fator de diferenciação de crescimento, além de idade e histórico clínico. Novas evidências com escores de maior poder preditivo são necessárias, especialmente para populações atualmente consideradas de baixo risco e perfis de risco ainda não contemplados nos escores atuais.
Referências:
1. Teppo K, Airaksinen KEJ, Jaakkola J, et al. Ischaemic stroke in women with atrial fibrillation: temporal trends and clinical implications. Eur HeartJ. 2024;45(20):1819-1827. doi:10.1093/eurheartj/ehae198.
2. Champsi A, Mobley AR, Subramanian A, et al. Gender and contemporary risk of adverse events in atrial fibrillation. Eur Heart J.2024;45(36):3707-3717. doi:10.1093/eurheartj/ehae539.
3. Gregory Y H Lip, Konsta Teppo, Peter Brønnum Nielsen, CHA2DS2-VASc or anon-sex score (CHA2DS2-VA) for stroke risk prediction in atrial fibrillation:contemporary insights and clinical implications, European Heart Journal, Volume45, Issue 36, 21 September 2024, Pages 3718–3720,
4. Friberg L, Benson L,Rosenqvist M, Lip GY. Assessment of female sex as a risk factor in atrialfibrillation in Sweden: nationwide retrospective cohort study. BMJ.2012;344:e3522. Published 2012 May 30. doi:10.1136/bmj.e3522
5. Nielsen PB, Skjøth F,Overvad TF, Larsen TB, Lip GYH. Female Sex Is a Risk Modifier Rather Than a Risk Factor for Stroke in Atrial Fibrillation: Should We Use a CHA2DS2-VA ScoreRather Than CHA2DS2-VASc?. Circulation. 2018;137(8):832-840.doi:10.1161/CIRCULATIONAHA.117.029081