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O músculo esquelético também é um órgão endócrino
Escrito por
Erik Trovao
Publicado em
28/7/2022
O conhecimento do tecido muscular esquelético como um órgão endócrino vem seguindo um caminho semelhante ao do tecido adiposo. Antes visto apenas como um tecido que armazenava gordura, hoje sabemos que os adipócitos produzem uma série de proteínas com ação endócrina, chamadas de adipocinas, com destaque para a leptina que, entre outras funções, regula negativamente o apetite no hipotálamo. Da mesma forma, cada vez mais temos estabelecido que o músculo esquelético também é um órgão endócrino, não se limitando apenas às funções de movimento e locomoção.
Ao constatarmos que a maioria das adipocinas são pró-inflamatórias e, assim, deletérias para a saúde metabólica e cardiovascular, seria de se esperar que algum outro tecido produzisse proteínas que pudessem contrabalancear este efeito. Seria este outro tecido o músculo?
Esta teoria faz todo sentido quando analisamos o papel crucial que o exercício físico tem na saúde geral de qualquer indivíduo. O sedentarismo, como sabemos, aumenta o risco de uma série de doenças: diabetes mellitus tipo 2, osteoporose, doença cardiovascular e alguns tipos de câncer, como mama e cólon. A prática de exercício físico atenuaria este risco apenas pela perda da massa gorda e a redução de adipocinas deletérias ou a contração muscular e o aumento da massa magra seriam capazes de enviar algum sinal para órgãos distantes, como fígado e cérebro?
Após as últimas décadas de pesquisas, hoje sabemos que o músculo esquelético produz e secreta citocinas e outros peptídeos que exercem ações autócrinas, parácrinas e endócrinas: as miocinas.
As miocinas parecem mesmo contrabalancear o efeito pró-inflamatório das adipocinas, ao mesmo tempo que servem de mediadores para os efeitos positivos do exercício físico na prevenção de doenças metabólicas e cardiovasculares.
Abaixo, listamos as principais miocinas já identificadas:
- Irisina: secretada em resposta ao exercício físico, esta miocina tem sido implicada no aumento da diferenciação do tecido adiposo branco em tecido adiposo marrom, que está envolvido com o aumento do gasto energético.
- Interleucina-6 (IL-6): sabemos que, em indivíduos obesos com distúrbios metabólicos, os níveis séricos de IL-6 estão cronicamente aumentados, exercendo efeitos inflamatórios negativos. No entanto, durante a atividade física e a contração muscular, o músculo esquelético aumenta agudamente a produção de IL-6 que gera os seguintes efeitos positivos: aumento da captação de glicose pelo miócito, aumento da lipólise e aumento da oxidação de gordura pelo músculo. Logo após a contração muscular, a IL-6 é rapidamente degradada pelo fígado e seus níveis se mantém baixos em períodos de repouso. No entanto, em indivíduos sedentários, se estabelece um estado de resistência à ação da IL-6 (semelhante ao que acontece com a ação da insulina), inclusive no próprio músculo, passando a predominar seus efeitos inflamatórios negativos em detrimento dos seus efeitos metabólicos positivos.
- LIF: esta miocina tem importantes efeitos autócrinos e parácrinos, aumentando a proliferação muscular durante a atividade física. Também parece ter efeito positivo sobre o tecido ósseo, aumentando a formação óssea.
- IGF-1 e FGF-2: estes dois hormônios também parecem ser produzidos pelos miócitos em resposta à contração muscular e têm como principal alvo o osteoblasto, estimulando, assim, a formação óssea.
- Proteína 1 relacionada à folistatina: esta miocina parece ter um efeito positivo sobre o sistema cardiovascular, já que ela melhora a função endotelial e promove revascularização em áreas previamente isquêmicas.
- Miostatina: esta é uma miocina que atua, especialmente, no tecido adiposo e no próprio tecido muscular, mas que, em altos níveis é prejudicial. Ela aumenta a massa adiposa ao mesmo tempo em que inibe a hipertrofia muscular. Seus níveis aumentam na obesidade e durante o sedentarismo. Tanto exercício físico aeróbico quanto resistido reduz seus níveis, especialmente através da secreção hepática da folistatina, um inibidor da secreção muscular de miostatina.
Estas miocinas, citadas acima, não são as únicas já descobertas (podemos citar outras como as interleucinas 7, 8 e 15 e o FGF-21), mas os cientistas também têm consciência de que muitas outras ainda faltam ser descobertas. Por exemplo, as evidências de que o tecido muscular influencia positivamente a função endócrina do pâncreas, como a secreção de insulina estimulada pelo GLP-1, se acumulam. No entanto, ainda não se sabe qual miocina exerceria esse efeito.
Enquanto aguardamos as novas descobertas sobre as miocinas, é importante reforçar o já estabelecido conhecimento de que o músculo esquelético é também um órgão endócrino. E, como tal, exerce efeitos positivos sobre a sensibilidade à insulina, o acúmulo de gordura visceral, o endotélio vascular e a função do tecido adiposo (e do próprio músculo).
Desta forma, o aumento do risco de doenças cardiometabólicas com a inatividade física possui uma base fisiopatológica cada vez mais bem compreendida, o que nos ajuda a firmar, sem nenhuma sombra de dúvida, o exercício físico como algo fundamental para a saúde global.