Metformina reduz eventos cardiovasculares em pacientes pré-diabéticos?

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A metformina é um dos medicamentos antidiabéticos orais mais utilizados no mundo, sendo indicada pelas diretrizes como umas das opções preferenciais para o tratamento de diabetes mellitus tipo 2 (DM2) 1. Essa opção se justifica, entre outros fatores (como disponibilidade e baixo cuso), por evidências do estudo UKPDS (United Kingdom Prospective Diabetes Study) sugerindo um menor risco de eventos cardiovasculares (CV) entre os pacientes com DM2 e obesidade que receberam metformina2. Além disso, o estudo DPP (Diabetes Prevention Program) mostrou que a metformina reduziu a incidência de novos casos de DM2 entre indivíduos com glicemia de jejum alterada3.  Porém, será que a metformina poderia também prevenir eventos CV entre os indivíduos com glicemia de jejum alterada, mas sem diagnóstico de DM2?

Esta questão foi investigada numa análise secundária dos estudos DPP e sua extensão, o DPPOS (Diabetes Prevention Program Outcomes Study), publicada por Goldberg e cols. no periódico Circulation4. No estudo DPP, 3234 indivíduos com glicemia de jejum alterada (isto é, entre 95 e 125 mg/dL) e índice de massa corporal (IMC) ≥ 24 kg/m2 foram randomizados para três grupos: metformina 850 mg duas vezes ao dia, placebo ou intervenções de mudança de estilo de vida (como dieta para perder pelo menos 7% de peso e atividade física pelo menos 150 minutos por semana). Após um seguimento médio de 3 anos, os sobreviventes foram seguidos por mais 18 anos no estudo DPPOS, sendo oferecida intervenção de estilo de vida a todos, após o fim da fase randomizada (ou seja, os 3 primeiros anos). O desfecho primário desta análise secundária foi o composto de morte CV, infarto ou AVC. O estudo também analisou a progressão dos fatores de risco CV ao longo do tempo, como IMC, pressão arterial e níveis de lípides e hemoglobina glicada. Durante o seguimento, o controle dos fatores de risco CV foi de uma maneira geral mais favorável nos grupos metformina e mudança de estilo de vida. Entretanto, a incidência de eventos CV não foi diferente entre os grupos metformina e placebo (hazard ratio [HR] 1,03; IC 95% 0,78-1,37; P = 0,81) nem entre os grupos mudança de estilo de vida e placebo (HR 1,14; IC 95% 0,87-1,50; P = 0,34). Também não houve qualquer diferença estatisticamente significativa com estes tratamentos sobre os componentes individuais destes desfechos. Os resultados foram semelhantes em análises adicionais que ajustaram para o uso de metformina ao longo do tempo após a fase inicial randomizada.

O que estes resultados sugerem? Antes de mais nada, é importante reconhecer algumas limitações importantes do estudo.

  • Em primeiro lugar, por se tratar de um estudo abrangendo indivíduos pré-diabéticos e livres de doença CV prévia, com idade média de 51 anos, o estudo abrangeu uma população de muito baixo risco de eventos. Se observarmos a incidência de eventos CV neste estudo, ao redor de 6 eventos por 1000 pacientes-ano, ela é muito inferior a estudos de DM2 (em que esta taxa variava de 13 a 44 eventos por 1000 pacientes-ano)5.
  • Outra limitação importante foi a de que, apesar do longo tempo de seguimento (21 anos) a fase randomizada só durou os primeiros 3 anos. Após isso, os grupos passaram a ser tratados de acordo com a preferência dos seus médicos (que tenderiam muito mais a dar metformina no grupo placebo, em virtude do conhecimento dos dados positivos do estudo original), sendo inclusive as mudanças de estilo de vida oferecidas a todos os pacientes do estudo. Ao final destes 21 anos, houve uma grande taxa de drop-in, ou seja, pacientes do grupo placebo recebendo os tratamentos randomizados (metformina e mudança de estilo de vida), de tal maneira que a magnitude de efeito entre os grupos passa a ser diluída, podendo assim explicar o achado “neutro” da metformina neste estudo.

Feitas estas considerações, o que fazer então na nossa prática clínica? Em virtude dos efeitos salutares sobre fatores de risco CV e sobre a prevenção de DM2 já comprovados, devemos continuar considerando o uso de metformina e (principalmente) mudanças de estilo de vida a todos os nossos pacientes com glicemia de jejum alterada. A questão se estas intervenções poderiam, além de controlar fatores de risco, levar a impacto na prevenção de doença CV, é uma pergunta ainda em aberto e que deve ser respondida em futuros estudos.

Referências:

  1. American Diabetes Association (2018) 9. Cardiovascular disease and risk management: standards of medical care in diabetes-2018. Diabetes Care 41:S86–S104.
  2. UK Prospective Diabetes Study (UKPDS) Group. Effect of intensive blood-glucose control with metformin on complications in overweight patients with type 2 diabetes (UKPDS 34). Lancet 1998; 352:854–865
  3. Knowler WC, Barrett-Connor E, Fowler SE, Hamman RF, Lachin JM, Walker EA, Nathan DM; Diabetes Prevention Program Research Group. Reduction in the incidence of type 2 diabetes with lifestyle intervention or metformin. N Engl J Med. 2002;346:393–403.
  1. Goldberg RB, Orchard TJ, Crandall JP, Boyko EJ, Budoff M, Dabelea D, Gadde KM, Knowler WC, Lee CG, Nathan DM, Watson K, Temprosa M; Diabetes Prevention Program Research Group*. Effects of Long-term Metformin and Lifestyle Interventions on Cardiovascular Events in the Diabetes Prevention Program and Its Outcome Study. Circulation. 2022; 145(22):1632-1641.
  2. Zelniker TA, Wiviott SD, Raz I, Im K, Goodrich EL, Bonaca MP, Mosenzon O, Kato ET, Cahn A, Furtado RHM, Bhatt DL, Leiter LA, McGuire DK, Wilding JPH, Sabatine MS. SGLT2 inhibitors for primary and secondary prevention of cardiovascular and renal outcomes in type 2 diabetes: a systematic review and meta-analysis of cardiovascular outcome trials. Lancet. 2019; 393(10166):31-39.