Compartilhe
Implante de válvula mitral por cateter: expectativa ou realidade?
Escrito por
Eduardo Pessoa
Publicado em
18/9/2017
O implante de prótese valvar aórtica por cateterismo (TAVI) para o tratamento da estenose aórtica calcífica é uma realidade nos dias atuais, com evidencias científicas sólidas, estudos clínicos robustos, indicações bem definidas e mais de 250.000 pacientes tratados ao redor do mundo. No entanto, para o implante de prótese mitral por cateter o cenário é bem mais diferente. No território aórtico, em mais de 90% dos casos, o implante valvar por cateter pode ser realizado por acesso transvascular (artéria femoral, artéria subclávia ou diretamente pela aorta ascendente). Além disso, o aparato valvar aórtico tem uma estrutura de funcionamento mais simples quando comparado ao mitral. Por outro lado, o desafio para a abordagem da válvula mitral por técnicas menos invasivas passa, dentre outros, pela dificuldade de acesso a um território situado no interior do coração, as relações anatômicas do aparato mitral com estruturas adjacentes (ex: via de saída do ventrículo esquerdo) e a complexidade anatômica do complexo valvar mitral composto por folhetos, cordoalhas e músculos papilares.
Para direcionar nossa discussão, vamos separar didaticamente as opções de tratamento percutâneo da válvula mitral:
- Estenose mitral: neste cenário a valvoplastia por cateter balão (técnica de Inoue) tem evidência científica construída ao longo de décadas e indicações clínicas precisas.
- Insuficiência mitral funcional: como discutido em um post prévio existem técnicas percutâneas de reparo valvar que se colocam como alternativa ao tratamento cirúrgico em cenários específicos. Dentre elas, a que apresenta maior experiência acumulada é a clipagem mitral com o dispositivo MitraClip (Abbott Vascular).
- Insuficiência mitral mixomatosa e reumática: cenário ainda pouco explorado por terapias por cateter.
- Disfunção de prótese mitral biológica: talvez seja este o principal cenário de maior desenvolvimento do implante transcateter da válvula mitral (TMVI) e, portanto, o principal objetivo deste post. O implante de prótese sobre prótese (valve-in-valve) mitral detém o maior número de casos de TMVI realizados no Brasil e no Mundo.
- Disfunção de prótese mitral mecânica: não é passível de tratamento percutâneo.
Assim sendo, fica mais simples entender que uma grande limitação ao TMVI é a dificuldade de ancoragem segura de uma prótese sem sutura no anel mitral. Por isso, é menos complexo implantar uma prótese sobre a estrutura de uma outra prótese disfuncionante (valve-in-valve) ou sobre um anel mitral severamente calcificado (degeneração calcífica), analogamente ao que acontece no TAVI. A prótese tem onde se ancorar para não ser deslocada. Por outro lado, é mais difícil o implante de uma prótese sobre um anel mitral “liso”, que não oferece atrito para ancoragem do dispositivo, como nos casos de insuficiência mitral mixomatosa, funcional, etc.
Uma outra limitação do TMVI nos dias atuais é a necessidade de desenvolvimento de próteses específicas destinadas à posição mitral. Embora existam próteses dedicadas à mitral em utilização e em estudos (cardiAQ valve, Tiara valve, etc), a maior parte dos casos até o momento foram realizados com próteses balão-expansíveis aórticas (próteses de TAVI) improvisadas para a posição mitral.
Diferentemente do TAVI, o implante mitral por cateter ainda tem experiência clínica e evidência científica limitadas (a maior parte proveniente de registros internacionais). O maior número de casos realizados se destina ao implante valve-in-valve para o tratamento de disfunção de bioprótese, e uma menor parcela para o tratamento de válvulas nativas com calcificação severa do anel mitral.
Dica: Do ponto de vista clínico, o TMVI ainda se posiciona como uma terapia alternativa e de exceção para pacientes de alto risco cirúrgico e, na maioria das vezes, com idade avançada.
As principais vias de acesso são a transfemoral (por veia femoral e punção transeptal) e a transapical. A maior parte da experiência no Brasil e no mundo é com o acesso cirúrgico transpical, através de uma pequena incisão na altura do ápice de ventrículo esquerdo. A via transfemoral, embora menos invasiva, envolve necessariamente a punção do septo interatrial para acesso ao átrio esquerdo e à válvula mitral.
Então, pelo exposto, nos parece que o TMVI é uma realidade apenas para um nicho muito específico de pacientes. Mas a expectativa é que com o aprimoramento da técnica e das próteses dedicadas, esta tecnologia avance e se torne mais aplicável e com indicações melhor definidas.
Por fim, finalizamos este post com o exemplo de um paciente masculino, 79 anos, com antecedente de dupla troca valvar mitral e aórtica há 5 anos, DPOC, doença renal crônica estágio 4 e disfunção ventricular esquerda grave (FEVE: 35%). STS score para mortalidade: 13%. Quadro de insuficiência cardíaca em classe funcional 4 por disfunção de bioprótese mitral: estenose protética (Gradiente AE-VE médio: 14 mmHg) e insuficiência mitral por leak paravalvar importante. Bioprótese aórtica normofuncionante. Indicada oclusão percutânea do leak paravalvar com plug vascular e implante de prótese mitral por cateter valve-in-valve para correção da estenose protética. Procedimento realizado por acesso venoso transfemoral e punção transeptal com sucesso. Controle ecocardiográfico final demonstrou prótese bem locada com ausência de refluxo mitral e de gradiente AE-VE.
Referência bibliográfica:
- De Backer O, Piazza N, Søndergaard L et al. Percutaneous Transcatheter Mitral Valve Replacement. An Overview of Devices in Preclinical and Early Clinical Evaluation. Circ Cardiovasc Interv. 2014;7:400-409.