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Estudo FAME 3: cirurgia de revascularização miocárdica é melhor que angioplastia?
Escrito por
Remo Holanda
Publicado em
10/11/2021
Uma das questões mais debatidas da Cardiologia ao longo dos anos tem sido qual é o método ideal de revascularização do miocárdio na doença arterial coronária (DAC) crônica multiarterial. Por um lado, a cirurgia de revascularização do miocárdio (CRVM) proporciona uma revascularização mais completa e com maior durabilidade, sobretudo quando utilizado o enxerto da artéria mamária interna (torácica interna). Por outro lado, a angioplastia transluminal coronária (ATC), principalmente com o advento dos stents coronários, permitiu um grande avanço em virtude da maior comodidade e tempo de recuperação mais rápido em relação à CRVM. Estudos importantes têm comparado ambas as técnicas, sendo a CVRM ainda o procedimento de escolha em pacientes com DAC multiarterial e portadores de diabetes, disfunção ventricular esquerda, ou com alto grau de complexidade anatômica1,2,3. Uma recente publicação no New England Journal of Medicine somou mais um capítulo neste importante debate4. No estudo FAME-3, os investigadores analisaram 1500 pacientes com DAC triarterial (excluindo-se pacientes com lesão no tronco da coronária esquerda ou com fração de ejeção < 30%) que foram randomizados para CRVM versus ATC com stent zotarolimus guiada por fisiologia invasiva, com FFR (fractional flow reserve, reserva de fluxo fracional). Esta técnica permite que se identifique quais lesões são de fato causadoras de isquemia considerável, com isso se proporcionando uma ATC mais adequada. Ao final de um ano, 10,6% dos pacientes do grupo ATC apresentaram o desfecho primário do estudo (morte, infarto, AVC, ou nova revascularização), contra 6,9% dos pacientes randomizados para CRVM (hazard ratio = 1,50; IC 95% 1,10-2,20; p para não inferioridade = 0,35). Já o desfecho secundário de morte, infarto ou AVC ocorreu em 7,3% dos pacientes do grupo ATC versus 5,2% do grupo CRVM (hazard ratio = 1,40; IC 95% 0,90-2,10). A incidência de sangramento clinicamente relevante foi maior no grupo submetido a CRVM (3,8 versus 1,6% em 1 ano; p < 0,01).
O que estes resultados representam e como eles devem influenciar a nossa prática clínica? Em primeiro lugar, este estudo deve ser interpretado como um estudo de não-inferioridade, situação na qual um novo tratamento, mais barato ou mais conveniente, é testado contra um tratamento-padrão. Neste caso, o objetivo do estudo é excluir se o novo tratamento, na pior das hipóteses, perderia para o tratamento padrão dentro de uma margem aceitável, determinado pelo IC (intervalo de confiança) de 95%. No caso do estudo FAME-3, isso não ocorreu, uma vez que esta margem aceitável era de até 1,65 (ou seja, no pior dos cenários, baseado no intervalo de confiança, seria aceitável um aumento de 65% de complicações cardiovasculares com a ATC em relação à cirurgia), e, pelo IC de 95% (vide acima), houve, no pior dos cenários, um aumento de até duas vezes nos desfechos no grupo ATC. Com isso, apesar de suas conveniências, a ATC não foi equivalente à CRVM em pacientes com DAC triarterial, mesmo quando utilizado um stent de última geração e o procedimento foi otimizado pela técnica de FFR. Além disso, se observarmos de novo o IC de 95%, na melhor das hipóteses (vejam agora a margem inferior), a ATC leva a um aumento de 10% no risco do desfecho primário. Isso, em outras palavras, equivale a dizer que a CRVM de fato é superior, e não equivalente, à ATC.
Outro ponto importante é o de que os autores utilizaram o mesmo critério para definir infarto peri-procedimento nos dois grupos, ATC e CRVM, classificando quando houvesse elevação de troponina de pelo menos 10 vezes associado a algum sinal adicional (nova onda Q ou alterações isquêmicas no ECG, perda de músculo viável em exames de imagem, etc). Tal definição é diferente do utilizado na 4ª Definição Universal de Infarto, na qual se atribui um ponto de corte menor para infarto pós ATC, de 5 vezes o valor superior de normalidade do método (o que é intuitivo, pois se espera muito mais injúria miocárdica após uma agressão cirúrgica do que após um procedimento endovascular)5. O uso desta definição tenderia a favorecer muito mais a ATC e, mesmo assim, esta ainda foi inferior à CRVM. Por último, o tempo curto de seguimento (um ano) também poderia subestimar um benefício ainda maior da cirurgia que, em outros estudo, tem mostrado um efeito cumulativo benéfico ao longo de vários anos de seguimento2,6.
Diante dos achados do FAME 3, podemos afirmar que a CRVM ainda é o procedimento-padrão em pacientes com DAC crônica triarterial que persistam sintomáticos a despeito do tratamento clínico otimizado ou que evoluam com disfunção ventricular esquerda. Em casos selecionados, quando o risco cirúrgico for proibitivo em virtude de comorbidades ou idade avançada, e sendo tecnicamente factível, a ATC pode ser considerada uma opção razoável.
OBS: já que falamos do FAME 3, lembra dos estudos FAME 1 e FAME 2? Para ler um resumo dos mesmos, clique aqui para o FAME 1 e aqui para o FAME 2.REFERÊNCIAS
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