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FA + valvopatias: posso usar anticoagulantes diretos (DOACs)?
Escrito por
Tiago Bignoto
Publicado em
11/3/2022
Algumas patologias demandam a necessidade de uso crônico de anticoagulantes orais e diversos aspectos relacionados a risco e benefício devem ser postos na balança, visto serem terapêuticas com efeitos colaterais potencialmente graves. No início dos anos 2010, o desenvolvimento de medicamentos de ação direta na cascata da coagulação (anticoagulantes diretos ou DOACs) trouxe alternativas para os até então únicos disponíveis para uso oral, antagonistas da vitamina K. Com a facilidade posológica de doses pré-estabelecidas e a estabilidade farmacocinética houve uma revolução no tratamento de uma patologia de elevada prevalência na cardiologia, a fibrilação atrial. Mas, podemos usar os DOACs em pacientes com valvopatias?
No entanto, os trials iniciais excluíam, sistematicamente os pacientes portadores de valvopatias, principalmente aqueles portadores de próteses mecânicas e de estenose mitral moderada a grave. Costumava-se usar o termo FA valvar e não valvar mas isto muitas vezes gerava confusão. Isto porque o conceito de FA valvar variava de uma fonte para a outra. Algumas diretrizes consideravam FA valvar apenas os casos associados a estenose mitral relevante ou prótese mecância, enquanto outras incluíam pacientes com próteses biológicas na definição. Além disso, muitos médicos ficavam em dúvida se uma FA associada a insuficiência mitral moderada, por exemplo, seria uma FA valvar ou não (já respondendo à pergunta, não, não era considerada). Por isto, os termos FA valvar e não valvar froam abandaonados pelas diretrizes mais atuais pois uma série de pacientes outros com diversas valvopatias eram incluídos nos trabalhos e tinham resultados interessantes, ao menos não inferior ao uso da varfarina.
As diretrizes atuais, inclusive já incluem outras valvopatias e até mesmo próteses biológicas como possibilidades para uso de DOACs ao invés dos antagonistas da vitamina K, permanecendo como contraindicação, no atual cenário de publicações, as próteses mecânicas e a estenose mitral de grau mais avançado.
No início dos 90, uma série de publicações evidenciou que o uso de anticoagulantes reduzia substancialmente o risco elevado de eventos cerebrovasculares em pacientes com fibrilação atrial, mas os portadores de valvopatias reumáticas eram excluídos dessas publicações por questões éticas, visto que até esse momento, entendia-se que essa população apresentava elevada incidência de AVC e não seria adequado randomiza-las nesses Trials.
DOACs x valvopatias em geral
Dos mais de 70 mil pacientes incluídos em publicações metodologicamente bem desenhadas como ARISTOTLE, ENGAGE, ROCKET-AF e o RE-LY, quase 20% tinham alguma valvopatia considerada ao menos moderada (a maioria regurgitação mitral) ou intervenção valvar prévia. De forma geral, os pacientes portadores de valvopatias tinham desfechos semelhantes aos demais quando avaliada eficácia em evitar fenômenos tromboembólicos e segurança sobre sangramentos maiores. Desses, apenas no ROCKET-AF que a população portadora de valvopatia apresentou mais sangramento maior em uso da rivaroxabana quando comparado aos não portadores de valvopatias. Como houve exclusão dos portadores de estenose mitral moderada a importante e próteses mecânicas, a avaliação dessas publicações sugere que esses valvopatas apresentam os mesmos desfechos que os demais em uso dos DOACs.
DOACs x próteses mecânicas
Avaliando especificamente sobre o uso de DOACs em próteses mecânicas, os achados inicias do RE-ALIGN mostraram elevação da mortalidade e de eventos cerebrovasculares graves, causando sua interrupção precoce e a contraindicação dessa classe de medicamentos nesse contexto. No entanto, existem alguns argumentos que poderiam embasar novo estudos. Inicialmente, haveria a sugestão de usar os DOAC’s após os primeiros 3 meses de abordagem cirúrgica, momento esse com menor inflamação sistêmica, portanto, menor estado pró-trombótico e também período necessário para suposta endotelização da prótese, reduzindo sua trombogenicidade. Outro aspecto é em relação ao fármaco utilizado. A dabigatrana atuaria numa parte da cascata não favorável à sua utilização em próteses mecânicas (inibidor direto da trombina) e teria uma disponibilidade sérica inadequada para a dosagem habitualmente empregada. Avaliações iniciais apontariam que os inibidores do fator Xa como a apixabana e a rivaroxabana conseguiriam um efeito maior na cascata, mas as doses iniciais estipuladas são maiores do que as permitidas atualmente.
A posição e a marca da prótese mecânica também podem influenciar nesses desfechos, visto que próteses na posição aórtica e da marca ON-X apresentam menores incidência de eventos trombóticos e o uso de determinados DOACs podem ser suficientes nesse contexto. Para tentar sanar essas dúvidas, está em andamento o PROACT-Xa quer avaliará o uso da Apixabana em pacientes com prótese ON-X na posição aórtica após 3 meses de implante. Isso poderá trazer mais informações sobre essa discussão.
DOACs x estenose mitral moderada ou importante
Agora falando sobre os pacientes com estenose mitral moderada a importante, não há trials publicados até o momento. A prevalência dessa patologia nos países desenvolvidos é baixa, mas o impacto global ainda é elevado. E para tornar esse contexto mais desafiador, pacientes com estenose mitral reumática apresentam baixa adesão ao tratamento com varfarina, tanto na análise de uso adequado, quanto de manutenção na faixa terapêutica. Mesmo o acompanhamento em serviços especializados para acompanhamento dos níveis de INR são baixos em países em desenvolvimento, com elevada prevalência de estenose mitral.
Um estudo sul-coreano avaliou, retrospectivamente, um grupo de pacientes com fibrilação atrial e estenose mitral e que usaram anticoagulação oral. Desses, aproximadamente 26% fizeram uso de DOACs e os resultados foram interessantes. Os pacientes que usaram DOACs tiveram risco menor de eventos hemorrágicos e mortalidade por todas as causas.
Atualmente, dois grandes Trials estão sendo conduzidos para tentar obter respostas sobre o uso dos DOACs na estenose mitral, sendo que um deles seleciona pacientes portadores de fibrilação atrial e estenose mitral importante também no Brasil, o INVICTUS. Há comparação de não inferioridade da rivaroxabana com a varfarina no desfecho primário composto por AVC e embolia sistêmica. Já o desfecho primário de segurança será sangramento maior.
DOACs x próteses biológicas
Outro ponto que sempre causou dúvidas no conceito de FA valvar foram os pacientes com próteses biológicas. Para esse aspecto, os Trials iniciais até incluíram alguns pacientes com biopróteses, mas o número era pequeno e as análises eram de subgrupos, portanto, sem muito validade prática. Mas como os resultados eram animadores, logo vieram publicações destinadas a avaliar o uso dos DOACs em próteses biológicas, incluindo o nacional RIVER trial.
Depois dessa publicação a diretriz europeia de valvopatias foi publicada autorizando o uso dos DOACs em pacientes portadores de próteses biológicas, inclusive nos primeiros 3 meses, embora essa diretiva tenha vindo de uma análise de subgrupo do RIVER trial.
Seguindo a mesma linha, os pacientes que se submeteram a TAVI também foram avaliados em grandes publicações em que o uso dos DOACs, quando indicado formalmente uma anticoagulação oral, é permitido. Vale ressaltar que os resultados do ENVISAGE-TAVI AF mostraram uma prevalência maior de sangramento gastrintestinal com o uso da Edoxabana em dose de 60mg quando comparado à varfarina, o mesmo não sendo encontrado com a dose corrigida para função renal.
Outro aspecto que as publicações com pacientes TAVI trouxeram foi que, uma vez indicado o uso de anticoagulante, não é necessária a manutenção de um antiagregante, tendo sido também incorporada essa conduta nas atuais diretrizes. No entanto, na ausência de uma clara indicação de uso de anticoagulação, como fibrilação atrial, nos pacientes submetidos a TAVI, o uso de DOAC no lugar da antiagregação apresentou piores desfechos, como demonstrado no GALILEO.
Em resumo:
Atualmente temos que o uso dos DOACs está autorizado, na indicação de anticoagulação, em pacientes portadores das seguintes valvopatias: Insuficiência aórtica, insuficiência mitral, estenose aórtica e estenose mitral discreta. Pacientes com biopróteses também podem usar o DOAC no lugar da varfarina.
Em pacientes submetidos a implante de TAVI, um tipo de bioprótese, o uso do DOAC está autorizado de forma isolada, quando indicada anticoagulação. Na ausência de indicação, não se deve substituir o antiagregante pelo DOAC.
Em pacientes com estenose mitral moderada a importante e naqueles com próteses mecânicas, até o momento, com as publicações existentes, o uso dos DOAC’s estão contraindicados.
O fluxograma abaixo, adaptado do artigo citado na referência, resume o cenário valvopatia x DOACs:
Referência: Fanaroff AC, Vora AM, Lopes RD. Non-vitamin K antagonist oral anticoagulants in patients with valvular heart disease. Eur H Journal 2022