Semaglutida pode causar perda de visão?

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Um estudo publicado no JAMA Opthalmology tem recebido destaque em diversas manchetes esta semana, sugerindo uma associação entre a semaglutida e a neuropatia óptica isquêmica anterior não arterítica (NAION), uma possível causa de perda visual.

Como o próprio nome descreve, a NAION é caracterizada por um processo inflamatório do nervo óptico associado a uma redução do fluxo sanguíneo. É uma condição rara, com prevalência estimada de 10 casos por 100 mil pessoas. Entre os fatores de risco para esta condição destacam-se idade mais avançada, diabetes, pressão alta, apneia do sono e insuficiência renal, todos com prevalência elevada entre os potenciais candidatos a tratamento com a semaglutida.

O polêmico estudo foi desenvolvido na clínica de Neuro-oftalmologia de Harvard, ou seja, um centro terciário único, envolvendo população que já teria naturalmente maior prevalência de NAION como uma das causas de atendimento referenciado.

Trata-se de um estudo retrospectivo com acompanhamentos de dezembro de 2017 a novembro de 2023. Os pacientes atendidos nesse período que usavam semaglutida foram divididos em duas coortes, uma de obesidade e outra de diabetes tipo 2, e pareados 1:2 em relação a idade, sexo, hipertensão, diabetes tipo 2, apneia obstrutiva do sono, obesidade, hiperlipidemia e doença arterial coronariana, bem como ausência de doença renal crônica, história pessoal ou familiar de neoplasia endócrina múltipla tipo 2, tireoide. tumores ou status de pancreatite.

A população da coorte diabetes foi composta por 710 pacientes sendo 194 que receberam prescrição de semaglutida e 516 com medicamentos antidiabéticos não GLP-1. Nessa população, NAION ocorreu em 17 pacientes na coorte de semaglutida (8,9%; IC 95%, 4,5%-13,1%) vs 6 na coorte comparativa (1,8%; IC 95%, 0%-3,5%) (HR, 4.28; 95% CI, 1.62-11.29; P <.001). A coorte obesidade incluiu 979 pacientes sendo 361 que receberam prescrição de semaglutida e 618 sem essa prescriçao. NAION ocorreu em 20 pacientes na coorte de semaglutida (6,7%; IC 95%, 3,6%-9,7%)  vs 3 na coorte comparativa (0,8%; IC 95%, 0%-1,8%) (HR, 7.64; 95% CI, 2.21-26.36; P <.001). Os casos de NAION ocorreram em sua quase totalidade no primeiro ano da prescrição da semaglutida.

O estudo tem uma série de limitações evidentes. Por seu desenho retrospectivo, poderia no máximo sugerir associação, sem qualquer evidência relacionada a causalidade.  Além disso, os dados derivam de uma população de um centro único de neuro-oftalmologia, e não a população geral. Não temos informações sobre a diferença de incidência em relação ao IMC, nem ao tempo de diabetes, essas variáveis fundamentais acabaram sendo analisadas como categóricas. Por fim, não há qualquer inferência sobre tempo de uso ou dose da semaglutida (em uma associação causal seriam esperadas relação desses parâmetros com a incidência de NAION).

De toda forma, estudos anteriores já relataram associação entre o uso da semaglutida e complicações oftalmológicas. No estudo SUSTAIN-6, envolvendo apenas pacientes com diabetes e alto risco cardiovascular, a maior incidência de complicações de retinopatia no grupo semaglutida foi atrelada ao controle rápido dos níveis glicêmicos, variável não considerada no presente estudo. Ao mesmo tempo, os diversos ensaios clínicos randomizados envolvendo a semaglutida em diferentes perfis de paciente já somam mais de 25000 indivíduos e a NAION nunca foi um efeito adverso relatado.

Atualmente, a semaglutida é a medicação mais prescrita para o tratamento da obesidade e ocupa a primeira linha entre os fármacos indicados para o DM2. Diversos ensaios clínicos randomizados evidenciaram seus benefícios no controle glicêmico, perda de peso, redução de eventos cardiovasculares, melhora d apneia do sono e de nefropatia diabética. Estes novos dados reforçam a necessidade de acompanhamento especializado no uso da medicação. Uma avaliação mais aprofundada em populações maiores e mais amplas, e a vigilância e notificação contínuas de potenciais casos de NAION, trarão maiores esclarecimentos.