Como avaliar a saúde óssea do indivíduo transgênero?

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Sabidamente, os hormônios sexuais exercem efeitos positivos no osso tanto de indivíduos do gênero feminino quanto masculino. O papel do estradiol na manutenção da saúde óssea em mulheres cisgênero é bem conhecido. No caso de homens cisgênero, o efeito da testosterona ocorre por duas vias: uma indireta através da aromatização em estradiol; e uma direta, que aumenta a aposição periostal e o tamanho do osso, características que aumentam proteção contra fraturas. Mas, em indivíduos transgênero, que iniciam reposição hormonal cruzada (RHC), como se comportaria, então, esta dinâmica hormonal sobre a massa óssea? E como deveríamos avaliar a saúde óssea do indivíduo transgênero?

Esta é uma pergunta cujas evidências ainda são escassas para uma resposta completamente satisfatória. No entanto, alguns estudos têm lançado alguma luz sobre esta questão, pelo menos no que diz respeito à densidade mineral óssea (DMO).

Em mulheres trans, estudo brasileiro realizado no Rio Grande do Sul, publicado por Fighera TM e colaboradores em 2018, corroborou achados de estudos menores anteriores que mostraram que a DMO destas pacientes é menor quando comparada a homens cisgênero mesmo antes do início da RHC. Acredita-se que uma menor quantidade de massa magra e uma maior prevalência de sedentarismo e de deficiência de vitamina D possam ser um dos fatores responsáveis por este achado.

Por outro lado, uma vez iniciada a RHC, não parece haver piora da DMO ao longo do acompanhamento. Coorte holandesa, que acompanhou 711 mulheres por 10 anos demonstrou, inclusive, um aumento da DMO nos primeiros dois anos, seguido por uma queda discreta, mas sem cair a valores abaixo dos basais. Também foi demonstrada uma correlação positiva entre níveis de estradiol e massa óssea.

Já em homem trans, a massa óssea basal não difere das mulheres cisgênero. E, após início da reposição com testosterona, ela, no mínimo, permanece estável, parecendo haver um aumento da aposição periostal, ficando a geometria óssea mais próxima da que encontramos em homens cisgênero.

De acordo com a mesma coorte holandesa citada acima, o acompanhamento de 543 homens transgênero em reposição de testosterona demonstrou que, no grupo com mais de 40 anos, ocorreu aumento significativo da DMO, talvez um reflexo da maior ocorrência de hipoestrogenismo nesta faixa etária.

Desta forma, tanto em homens quanto em mulheres transgênero, não parece haver necessidade de acompanhamento com densitometria óssea durante a RHC, uma vez que não parece ocorrer piora em nenhum dos dois grupos. Vale ressaltar, no entanto, que não temos dados sobre a ocorrência de fraturas.

De qualquer modo, devemos estar atentos para avaliar a saúde óssea em alguns pacientes específicos:

  1. Aqueles que possuem fatores de risco conhecidos para perda de massa óssea, especialmente, acima dos 40 anos. Devemos estar atentos, especialmente, nas mulheres trans mesmo antes do início da RHC.
  2. Aqueles com história de fratura de fragilidade.
  3. Aqueles que se submeteram à gonadectomia e suspenderam ou estão em uso irregular da reposição hormonal.
  4. Adolescentes que iniciam bloqueio puberal. A recomendação neste caso é muito mais em decorrência da escassez de estudos nesta população e o receio de haver perda de DMO com o bloqueio não acompanhado da RHC.

Vale ressaltar que, mesmo após a indicação da densitometria óssea, há dúvidas sobre a melhor forma de calcular o T e o Z-escore na população trans. Afinal, não há uma definição se o ideal seria comparar a DMO do paciente com o banco de dados do gênero de nascimento ou de identificação.

O ISCD (The International Society for Clinical Densitometry), em seu último posicionamento oficial em 2019, orientou calcular o T-escore baseando-se no banco de dados feminino tanto para homens quanto para mulheres trans. Já para o Z-escore, é recomendado o cálculo baseado no banco de dados do gênero de identificação.

Tal posicionamento, no entanto, é muito mais baseado em opiniões do que em evidências. Na verdade, como é possível perceber, ainda é preciso mais estudos para avaliar a saúde óssea do indivíduo transgênero, especialmente, no que diz respeito ao risco de fraturas. Enquanto as respostas não vêm, é importante estar atendo para as indicações específicas da solicitação da densitometria óssea e para a prevenção de perda de massa óssea, com estímulo à atividade física e adequada ingestão de cálcio na dieta.