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Os ruídos ambientais estão associados a uma pior saúde cardiovascular?
Escrito por
Ivson Braga
Publicado em
16/1/2025
Recentemente publicado no JACC, um trabalho interessante que correlacionou o aumento do risco cardiovascular com a exposição a ruídos sonoros ambientais (Higher Aircraft Noise Exposure Is Linked to Worse Heart Structure and Function by Cardiovascular MRI). Foi avaliado a interferência do ruído de aeronaves na saúde cardiovascular, pois estes apresentam: níveis mais elevados de pressão sonora, causando desconforto auditivo; um aumento rápido na intensidade em comparação com o início gradual do ruído de estradas ou ferrovias; maior conteúdo de ruídos de baixa frequência, que gera vibrações mais intensas; e padrões imprevisíveis que dificultam a adaptação. Estudos experimentais sugerem que a exposição ao ruído de aeronaves, especialmente à noite, está associada à disfunção diastólica, aumento da pressão arterial sistólica, disfunção endotelial e liberação de hormônios do estresse (cortisol e adrenalina).
A metodologia do estudo baseou-se na análise do banco de dados do UK Biobank, que incluiu indivíduos residentes próximos a aeroportos no Reino Unido. A exposição ao ruído foi avaliada com base em duas métricas: L night, representando os níveis de ruído noturno (≥45 dB), e L den, que reflete o nível médio de ruído ao longo de 24 horas (≥50 dB). Por meio de ressonância magnética cardiovascular (RMC), foram examinados parâmetros como massa ventricular esquerda (VE), espessura da parede ventricular e a dinâmica miocárdica.
Os pesquisadores analisaram dados de 3.635 indivíduos que viveram próximos aos quatro aeroportos no Reino Unido e tinham dados de imagens de RMC e não apresentavam dificuldades auditivas ou surdez. O estudo utilizou modelos estatísticos ajustados para variações demográficas, socioeconômicas, ambientais e de estilo de vida. Para avaliar o potencial impacto clínico do remodelamento do ventrículo esquerdo associado ao ruído, foram evidenciadas as associações entre as ressonâncias magnéticas e a ocorrência prospectiva de eventos cardíacos adversos maiores (MACE).
Os participantes expostos a maior L night apresentaram 7% (IC 95%: 4%-10%) maior massa ventricular esquerda e 4% (IC 95%: 2%-5%) mais espessamento das paredes do VE. Esse remodelamento concêntrico do VE foi relevante pois uma massa 7% maior do VE foi associada a um risco 32% maior de MACE. Também apresentaram menor deformação circunferencial global 8% [IC 95%: 4%-12%] que foi associada a um risco 27% maior de MACE. Os achados foram mais claros para L night, mas foram amplamente semelhantes em análises usando L den. Os participantes que não se mudaram de endereço durante o acompanhamento e foram continuamente expostos a níveis mais altos de ruído de aeronaves tiveram o pior fenótipo na RMC. Os resultados foram consistentes mesmo após o ajuste para potenciais fatores de confusão (diabetes, fatores de estilo de vida e variáveis ambientais, como poluição do ar).
O ruído parece atuar mais como um fator associado às alterações cardíacas do que propriamente uma causa direta, possivelmente refletindo sua relação com condições como hipertensão e a obesidade. No trabalho, o índice de massa corporal e a hipertensão pareceram mediar 10% a 50% das associações observadas.
Apesar da inovação da abordagem, o estudo apresenta várias limitações, como a possibilidade de confusão residual, classificação imprecisa da exposição ao ruído baseada em níveis de grupo. A falta de imagens repetidas e o intervalo entre a coleta de dados e as imagens RMC limitaram a análise longitudinal e a precisão das associações. O truncamento dos dados de ruído fornecidos pela Autoridade de Aviação Civil, impediu a avaliação de efeitos dose-resposta e pode ter subestimado o impacto do ruído. Além disso, houve viés de seleção, excluindo participantes mais expostos que se mudaram ou faleceram antes das imagens. Por fim, sendo um estudo observacional, não é possível estabelecer causalidade entre o ruído de aeronaves e as alterações cardíacas observadas.
Estamos vivendo um momento em que fatores de risco não tradicionais começam a ser reconhecidos, provavelmente contribuindo para o risco residual das doenças cardiovasculares. Nesse contexto, crescem evidências sobre a influência da poluição ambiental e sonora na saúde cardiovascular. Um exemplo recente marcante é o trabalho que identificou partículas microplásticas em pacientes submetidos a endarterectomias carotídeas. Diante desse cenário, é chegada a hora de incluir na história clínica a identificação sistemática desses novos fatores de risco, permitindo abordagens preventivas mais abrangentes e alinhadas com as complexidades do mundo atual.
Leitura recomendada:
https://papers.afya.com.br/blog/plasticos-podem-ser-os-novos-viloes-da-saude-cardiovascular
Referência:
Topriceanu, Constantin-Cristian et al. “Higher Aircraft Noise Exposure Is Linked to Worse Heart Structure and Function by Cardiovascular MRI.” Journal of the American College of Cardiology, S0735-1097(24)09797-3. 13 Dec. 2024, doi:10.1016/j.jacc.2024.09.1217.