Qual a Relação entre Obesidade e ICFEp?

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Qual a Relação entre Obesidade e ICFEp?

A insuficiência cardíaca (IC) é um grande problema de saúde pública, com prevalência mundial superior a 64 milhões. Mais da metade dos pacientes com IC apresentam uma fração de ejeção preservada (ICFEp), e a prevalência está aumentando em relação à IC com fração de ejeção reduzida. O aumento dos casos de ICFEp está relacionado ao aumento da idade média e às tendências crescentes na prevalência de hipertensão, síndrome metabólica, diabetes e fibrilação atrial - todas estas comorbidades intimamente ligadas ao desenvolvimento de excesso de gordura corporal e obesidade.

“Esse cansaço é da obesidade...”

A obesidade dobrou em mais de 70 países desde 1980. Estudos epidemiológicos identificaram uma forte relação independente entre obesidade e o desenvolvimento de ICFEp. Ao contrário das doenças ateroscleróticas, a ligação entre obesidade e IC não é explicada pelos fatores de risco cardiovascular tradicionais. Apesar da associação reconhecida, a ICFEp é frequentemente negligenciada como uma complicação cardiovascular entre pacientes com excesso de gordura corporal, levando ao subdiagnóstico de ICFEp relacionada à obesidade e, portanto, ao subtratamento.

Novos dados mudaram nosso pensamento sobre a contribuição da obesidade para a ICFEp - passando de uma causa mecânica de dispneia, para a causa direta primária de insuficiência cardíaca, mediada por vários efeitos prejudiciais na estrutura miocárdica, função e metabolismo, bem como efeitos sobre pulmão, músculo esquelético, rim e fígado, mediados coletivamente por inflamação sistêmica, ativação neuro-hormonal, desregulação autonômica e carga hemodinâmica alterada.

Pacientes com ICFEp obesos são frequentemente excluídos de ensaios clínicos, seja diretamente devido a limites de elegibilidade do índice de massa corporal (IMC), ou indiretamente por meio da exigência de níveis elevados de peptídeo natriurético plasmático, que são caracteristicamente deprimidos na obesidade. As características distintas da ICFEp por obesidade sugerem que ela pode exigir terapias diferentes de pacientes não obesos com IC.

Fisiologia do excesso de peso

O índice de massa corporal (IMC) é normalmente usado para definir a obesidade, mas não corresponde necessariamente ao mesmo grau de gordura corporal ou ao risco cardiovascular em diferentes indivíduos. Além da quantidade, a distribuição e a qualidade da gordura corporal excessiva também influenciam o risco cardiovascular. O aumento da gordura corporal ocorre pela expansão dos adipócitos (hipertrofia) e/ou pela geração de novos adipócitos (hiperplasia), variando de pessoa para pessoa. O excesso de gordura corporal, e especialmente a obesidade central, está associado a um maior risco de dislipidemia, hipertensão, diabetes tipo 2 e, é claro, ICFEp.

A função principal do tecido adiposo inclui o armazenamento e liberação de ácidos graxos. No entanto, o aumento da gordura visceral na obesidade está associado a um excesso de liberação de ácidos graxos livres (AGL) na circulação, que podem ter efeitos deletérios importantes no coração em pacientes obesos com ICFEp. Além disso, os depósitos de gordura no corpo têm características heterogêneas e distintas, com a gordura visceral sendo uma melhor preditora de perfis metabólicos anormais do que a gordura subcutânea do corpo superior. Indivíduos com defeitos na capacidade de proliferação dos precursores de adipócitos em resposta à necessidade de mais armazenamento de gordura desenvolvem adipócitos subcutâneos disfuncionais e hipertrofiados, que expõem os tecidos periféricos ao excesso de AGL. Com o tempo, o excesso de AGL pode direcionar o armazenamento de gordura em depósitos ectópicos, como gordura visceral, gordura pericárdica, músculo esquelético, fígado e triglicerídeos intracelulares.

Mesmo entre pacientes sem insuficiência cardíaca, a obesidade está associada a alterações pré-clínicas que levam à ICFEp, incluindo hipertrofia e remodelamento do ventrículo esquerdo, aumento na rigidez da câmara, relaxamento miocárdico prolongado, redução na disponibilidade de ATP miocárdico, e aumento do tecido adiposo epicárdico. A obesidade também está associada à expansão do volume intravascular, ativação neuro-hormonal, inflamação sistêmica e disfunção de múltiplos sistemas relevantes para a hemodinâmica, incluindo músculo esquelético, fígado e rins.

Desafios para diagnosticar ICFEp em obesos

O diagnóstico de insuficiência cardíaca em pessoas com obesidade apresenta desafios significativos. Afinal, esta pode causar sintomas como dispneia que não são decorrentes de disfunção cardíaca. O diagnóstico de ICFEp requer a demonstração objetiva de congestão, geralmente avaliada por exame físico, ecocardiografia e teste de peptídeo natriurético. No entanto, esses exames podem ser mais difíceis em pacientes obesos. Os níveis de BNP tendem a ser mais baixos e muitas vezes "normais" em pacientes obesos com ICFEp, o que pode mascarar a presença de congestão circulatória. Os testes hemodinâmicos invasivos durante o exercício são frequentemente necessários em casos duvidosos para determinar a presença ou ausência de ICFEp.

Diabetes, obesidade e ICFEp

Quanto ao diabetes tipo 2 e a síndrome metabólica, essas condições estão fortemente relacionadas ao excesso de gordura corporal, a ponto de muitos especialistas se referirem à síndrome comum de "diabesidade". Cerca de 40-50% dos pacientes com ICFEp têm diabetes, e outros 15-20% têm pré-diabetes. Em comparação com aqueles sem diabetes, os pacientes com ICFEp e diabetes têm pior qualidade de vida relatada pelo paciente, pior capacidade de exercício, aumento dos marcadores de inflamação, fibrose e disfunção endotelial, pior congestão, pior função renal, maior pressão de enchimento ventricular esquerdo e maior mortalidade e admissões por insuficiência cardíaca.

O paradoxo da obesidade em ICFEp

Assim como na maioria das doenças crônicas, há estudos observacionais onde paradoxalmente a obesidade protege contra desfechos adversos em pacientes com ICFEp estabelecida, apesar de ser um fator de risco bem estabelecido. No entanto, esses achados provêm de estudos transversais, que são limitados pelo viés de sobrevida (ou seja, pacientes obesos mais doentes morrem antes da avaliação) e pela causalidade reversa (pacientes com IC mais grave perderam peso devido à caquexia). Um estudo de randomização mendeliana, que supera as limitações das análises transversais, levantou questões sobre o paradoxo da obesidade na IC. A razão de risco para mortalidade por IC por um aumento de 1 kg/m2 no IMC foi de 1,18 (IC 95% 1,00-1,38), maior do que o observado nos outros estudos. Outros estudos mostraram que, quando medidas mais específicas de adiposidade, como a circunferência da cintura, são usadas no lugar do IMC, há um aumento contínuo no risco de mortalidade por todas as causas e cardiovascular quanto maior a gordura corporal, sem paradoxo. Isso ressalta a importância de diferentes parâmetros de adiposidade para a avaliação do risco cardiovascular.

Perspectivas futuras

Pacientes com insuficiência cardíaca de FE preservada e obesidade podem se beneficiar de terapias em desenvolvimento devido às características fisiopatológicas diferenciadas. Entre as possíveis intervenções estão tratamentos para reduzir a restrição pericárdica e para a redução de gordura através de diferentes vias, como modificação do secretoma do adipócito. Além disso, terapias que facilitam a perda de peso através da diminuição do apetite e/ou aumento da saciedade (por exemplo, análogos da GLP-1) estão em fase avançada de investigação neste contexto. Por fim, medidas que visam reduzir a inflamação associada à obesidade também podem ser promissoras para melhorar o estado clínico na ICFEp neste contexto.

Referências:

Borlaug BA, Jensen MD, Kitzman DW, Lam CSP, Obokata M, Rider OJ. Obesity and heart failure with preserved ejection fraction: new insights and pathophysiological targets. Cardiovasc Res. 2023 Feb 3;118(18):3434-3450. Powell-Wiley TM, Poirier P, Burke LE, et al; American Heart Association Council on Lifestyle and Cardiometabolic Health; Council on Cardiovascular and Stroke Nursing; Council on Clinical Cardiology; Council on Epidemiology and Prevention; and Stroke Council. Obesity and Cardiovascular Disease: A Scientific Statement From the American Heart Association. Circulation. 2021 May 25;143(21):e984-e1010.