Será que rastreamento de doença cardiovascular reduz mortalidade?

Compartilhe
Será que rastreamento de doença cardiovascular reduz mortalidade?

As doenças cardiovasculares (CV), como o acidente vascular cerebral (AVC) e o infarto agudo do miocárdio (IAM), são a maior causa de morte e incapacidade no mundo. Tratamentos como terapia redutora de lípides, antiplaquetários e controle rigoroso dos fatores de risco mudaram a história natural dessas doenças ao longo do tempo. Portanto, seria de se esperar que o diagnostico precoce por meio do rastreamento de doença cardiovascular possa reduzir mortalidade. Mas qual é a evidência científica para embasar tal conduta?Esta questão foi investigada pelo estudo DANCAVAS, apresentado no congresso da ESC 2022 e publicado simultaneamente no periódico New England Journal of Medicine. Neste estudo, pesquisadores dinamarqueses randomizaram cerca de 46 mil homens com idade entre 65 e 74 anos para duas estratégias de cuidado. A um grupo seria oferecido um “pacote” de exames de rastreamento incluindo glicemia, colesterol, escore de cálcio coronário, tomografia de tórax e abdome (para rastreio de aneurisma de aorta) e índice-tornozelo braquial, enquanto o outro grupo seguiria os cuidados de rotina. O desfecho primário foi de mortalidade por todas as causas, e o seguimento mediano foi de 5,6 anos (o estudo na verdade foi planejado para 10 anos de seguimento). No grupo submetido ao rastreamento, a mortalidade foi de 12,6% versus 13,1% no grupo controle (hazard ratio [HR] 0,95; intervalo de confiança [IC] 95% 0,90-1,00; P = 0,06). A estratégia de rastreamento se associou a uma menor ocorrência de AVC (HR 0,93; IC 95% 0,86-0,99), mas não se associou a uma menor incidência de infarto (HR 0,91; IC 95% 0,81-1,03).Como interpretar estes resultados e como aplicá-los na prática clínica? Diante de um estudo com resultado neutro (ou seja, sem diferença estatisticamente significativa a favor da intervenção), algumas indagações devem ser feitas. A primeira delas é que o estudo pode não ter tido poder estatístico suficiente para encontrar a diferença que foi esperada. No estudo DANCAVAS, a redução relativa de mortalidade estimada foi de 5%, porém o estudo foi planejado para 10 anos de seguimento. Isso significa que, nos primeiros 5 anos, pode não ter havido número suficiente de eventos (mortes) a fim de se chegar a uma conclusão sobre o resultado. Ou seja, é importante se aguardar os resultados de 10 anos antes de se tirarem conclusões definitivas sobre a eficácia ou não desta estratégia. Outro problema que pode ocorrer em estudos com resultados neutros é a diluição do efeito, seja porque muitos pacientes não aderiram ao protocolo, seja porque a intervenção não consegue resultar em qualquer efeito razoável sobre a população em risco. No estudo DANCAVAS, chamou a atenção que, dos pacientes randomizados para o rastreamento, somente 62% o fizeram de fato. Além disso, o grupo submetido a rastreamento não recebeu mudanças expressivas em terapia anti-hipertensiva ou antidiabética, embora tenha havido maior prescrição de estatinas. (Quer saber mais sobre como interpretar um artigo? Confira nosso curso de Medicina Baseada em Evidências https://lp2.cardiopapers.com.br/mbe-matriculas-perpetuo-vitrine/) Fica a pergunta: e agora, o que devo fazer com estes resultados? Diante das limitações expostas, ainda não é possível se excluir um benefício de redução de mortalidade com o rastreamento de doença CV, embora tal redução, caso exista, deve ser modesta nos primeiros 5 anos. As hipóteses de possível redução de mortalidade a longo prazo e de efeitos salutares sobre desfechos individuais (como AVC) devem ser investigadas em futuros estudos. Com isso, poderemos determinar se de fato de o rastreamento rotineiro de doença cardiovascular pode reduzir ou não morte ou desfechos clinicamente relevantes.REFERÊNCIAS Lindholt JS, Søgaard R, Rasmussen LM, Mejldal A, Lambrechtsen J, Steffensen FH, Frost L, Egstrup K, Urbonaviciene G, Busk M, Diederichsen ACP. Five-Year Outcomes of the Danish Cardiovascular Screening (DANCAVAS) Trial. N Engl J Med. 2022 Aug 27. doi: 10.1056/NEJMoa2208681. Epub ahead of print. https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2208681?url_ver=Z39.88-2003&rfr_id=ori:rid:crossref.org&rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed