Placas carotídeas não-estenosantes podem causar AVC?

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Placas carotídeas não-estenosantes podem causar AVC?

Sabe-se que o acidente vascular cerebral (AVC) é a maior causa de morte e incapacidade no mundo, além de figurar como fator de risco maior para declínio cognitivo(1, 2). Por este motivo, pacientes acometidos pela doença são extensamente investigados para que o mecanismo da lesão seja elucidado e, então, o paciente receba a melhor estratégia de prevenção de recorrência possível. Ainda que o grupo das etiologias do AVC isquêmico seja numeroso, um grupo de casos ainda é classificado como “criptogênico”, ou seja, sem mecanismo definido. Este grupo é particularmente vulnerável visto a estratégia de profilaxia secundária não ser tão bem estabelecida quanto àquela dos demais grupos.

Os eventos cerebrovasculares isquêmicos podem ser classificados em 2 grupos:

  • aqueles com lesão confirmada por exame de imagem - os AVCs -
  • e aqueles onde há déficit neurológico agudo compatível com síndrome cerebrovascular, mas cujo exame de neuroimagem não documenta lesão cerebral; chamamos o segundo grupo de ataque isquêmico transitório (AIT).

Confirmada a lesão encefálica isquêmica, os pacientes são submetidos à bateria de exames complementares, cujo objetivo é a definição da etiologia, ou do mecanismo de lesão. De uma forma resumida, avalia-se o coração, artérias intra e extracranianas e causas menos comuns, como doenças hematológicas e estados pró-trombóticos que podem ser causa do AVC.

Pensando nos métodos de avaliação do sistema carotídeo - composto pelas grandes artérias extracranianas responsáveis pela circulação anterior do cérebro - a ressonância nuclear magnética (RNM) é aquele que pode contribuir com maior número de informações quando avaliamos algo para além da presença ou não de placas ateroscleróticas e estenose. Com aparelho adequado e protocolos de aquisição de imagens específicos, consegue-se determinar características morfológicas das placas como, por exemplo: se há integridade da capsula fibrosa e quais as características do núcleo – se é composto por material lipídico, necrótico, hemorrágico ou misto.

Imaginemos um cenário onde há 2 pacientes diagnosticados com AVCs isquêmicos em território da circulação anterior, cuja investigação está finalizada. Como “achado positivo” do primeiro paciente temos “apenas” doença aterosclerótica e presença de placa, ipsilateral à lesão cerebral, que determina estenose superior à 70% da luz do vaso. Não é grande desafio, neste caso, atribuir a etiologia do AVC à doença carotídea e instituir a profilaxia secundária apropriada. Nosso segundo paciente também sofria de doença aterosclerótica, todavia não tinha uma placa que determinasse estenose ou outro achado que pudesse determinar o mecanismo da lesão isquêmica, ou seja, foi acometido por um AVC classificado como “criptogênico”.

Refletir sobre o segundo caso nos leva a alguns questionamentos possíveis: a doença carotídea, ainda que não determine estenose, pode contribuir para recorrência de eventos cerebrovasculares? Se sim, outras características da placa podem estar relacionadas à maior incidência de novos AVCs? Por fim, qual a melhor profilaxia secundária para nosso segundo paciente?

O que sabemos até o momento?

Placas carotídeas que não determinam estenose, avaliadas pode RNM, podem ser classificadas como “placas complicadas” (cCAP) desde que apresentem uma de três características:

  • ruptura da cápsula fibrosa ou,
  • hemorragia em seu interior ou,
  • estejam associadas a trombo intramural.

Se métodos menos complexos são capazes de detectar a presença de hemorragia, a avaliação da integridade da cápsula exige que o aparelho de ressonância magnética tenha capacidade de gerar um campo magnético de 3T (Tesla) e o emprego de métodos de aquisição de imagens específico para este fim.

Já é bem estabelecido na literatura que a presença de hemorragia no interior da placa, em lesões sintomáticas e associadas à estenose, está relacionada a maior risco de recorrência de AVC/AIT(3-6). Contudo, os estudos publicados até o momento não foram capazes de avaliar se a integridade da cápsula fibrosa e, portanto, se há ou não correlação com a taxa de recorrência isquemias cerebrais.

Quanto à melhor profilaxia secundária para os AVCs criptogênicos, trata-se de tema de discussão nas esferas assistencial e acadêmica. Até o momento da elaboração do presente texto, que ocorre após a publicação dos trials NAVIGATE-ESUS e RESPECT-ESUS, não há na literatura evidências suficientemente fortes que sustentem o uso de anticoagulantes.

Dica: atualmente, a terapia com antiagregantes plaquetários é a mais indicada em casos de AVCs criptogênicos.

Um passo adiante:

Com o objetivo de avaliar se a presença de placa carotídea complicada ipsilateral à lesão cerebral isquêmica está relacionada à maior recorrência de AVC/AIT, Kopczak e colegas elaboraram um estudo prospectivo, observacional e multicêntrico chamado CAPIAS (Carotid Plaque Imaging in Acute Stroke)(7). Em seu protocolo, pacientes eram elegíveis se tivessem idade superior a 49 anos e tivessem diagnóstico de AVC isquêmico restrito ao território de uma única artéria carótida nos últimos 7 dias.

Os pacientes selecionados foram seguidos de forma independente pela equipe de pesquisa com follow-up em 3, 12, 24 e 36 meses. O desfecho clínico primário observado foi recorrência de AVC ou AIT.

Os pesquisadores observaram que, do total de pacientes, 29% tinham cCAP ipsilateral ao AVC. Considerando toda a coorte, a taxa de incidência do desfecho combinado recorrência de AVC/AIT, no prazo de 3 anos, foi significativamente maior nos pacientes com cCAP ipsilateral (9.5 em 100 pacientes) em comparação com pacientes sem o achado (3.61 em 100 pacientes). Em análise no modelo de regressão ajustado para idade e sexo, a presença de cCAP ipsilateral também se manteve associada com um aumento de risco de recorrência de AVC/AIT de 2.5 vezes (p=0.043). Por fim, a análise restrita aos pacientes com cCAP ipsilateral ao AVC mostrou chance de AVC superior em 3.37 vezes (p=0.02).

Analisando apenas os AVCs classificados como criptogênicos, a taxa de recorrência de AVC ou AIT também foi significativamente mais alta nos pacientes portadores de cCAP (10.92 em 100 pacientes) em relação àqueles onde a cCAP não foi identificada (1.82 em 100 pacientes). O modelo de regressão ajustado para idade e sexo também mostrou 5.6 vezes maior em 3 anos de seguimento (p=0.013), resultados semelhantes e também significativos do ponto de vista estatístico foram obtidos quando a análise foi restrita aos pacientes com cCAP ipsilateral ao AVC, cuja chance foi 5.01 vezes superior àqueles sem cCAP ipsilateral (p=0.023).

Por fim, com relação às características das placas, o estudo mostra que, considerando toda a coorte, a presença de ruptura na capsula fibrosa está relacionada à aumento de chance de ocorrência do desfecho primário na ordem de 2.6 vezes (p=0.04) e, considerando apenas os casos de AVC criptogênico, aumento de 4.91 vezes o risco (p=0.026). O mesmo não se observou quando analisada a presença de hemorragia no interior da lesão. A análise de toda a coorte não mostrou associação estatisticamente significativa entre a presença de cCAP e ocorrência de AVC/AIT. Todavia a análise restrita aos AVCs criptogênicos mostrou associação positiva, com aumento de 4.37 vezes a chance de recorrência de AVC ou AIT (p=0.026).

Existe alguma implicação clínica dos achados em questão?

A resposta é sim! Ainda que este estudo, por ser observacional, não tenha como objetivo propor mudanças em guidelines de tratamento, seus resultados fornecem argumentos suficientes para discutirmos a forma como investigamos os pacientes com AVC isquêmico em território de circulação anterior. Dado que é possível detectar a presença de hemorragia no interior da placa com equipamentos e protocolos de aquisição de imagens convencionais, amplamente disponíveis, e tendo o estudo mostrado correlação positiva entre o achado e a recorrência de evento cerebrovascular agudo faz-se necessário discutir a incorporação desta modalidade de neuroimagem na rotina de investigação do AVC isquêmico de circulação anterior.

Além da implicação na prática clínica diária, resultados como os expostos fomentam a pesquisa clínica. Novos estudos podem ser desenhados a partir destas evidências; com novas hipóteses, outros pacientes, mais dados a ciência evolui no sentido de individualizarmos, sempre que possível, o tratamento proposto e, assim, obtermos melhores resultados.

Referências:

  1. Collaborators GBDS. Global, regional, and national burden of stroke and its risk factors, 1990-2019: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2019. Lancet Neurol. 2021;20(10):795-820.
  2. Pendlebury ST, Rothwell PM, Oxford Vascular S. Incidence and prevalence of dementia associated with transient ischaemic attack and stroke: analysis of the population-based Oxford Vascular Study. Lancet Neurol. 2019;18(3):248-58.
  3. Schindler A, Schinner R, Altaf N, Hosseini AA, Simpson RJ, Esposito-Bauer L, et al. Prediction of Stroke Risk by Detection of Hemorrhage in Carotid Plaques: Meta-Analysis of Individual Patient Data. JACC Cardiovasc Imaging. 2020;13(2 Pt 1):395-406.
  4. Kwee RM, van Oostenbrugge RJ, Mess WH, Prins MH, van der Geest RJ, ter Berg JW, et al. MRI of carotid atherosclerosis to identify TIA and stroke patients who are at risk of a recurrence. J Magn Reson Imaging. 2013;37(5):1189-94.
  5. Hosseini AA, Simpson RJ, Altaf N, Bath PM, MacSweeney ST, Auer DP. Magnetic Resonance Imaging Plaque Hemorrhage for Risk Stratification in Carotid Artery Disease With Moderate Risk Under Current Medical Therapy. Stroke. 2017;48(3):678-85.
  6. Lu M, Peng P, Cui Y, Qiao H, Li D, Cai J, et al. Association of Progression of Carotid Artery Wall Volume and Recurrent Transient Ischemic Attack or Stroke: A Magnetic Resonance Imaging Study. Stroke. 2018;49(3):614-20.
  7. Kopczak A, Schindler A, Sepp D, Bayer-Karpinska A, Malik R, Koch ML, et al. Complicated Carotid Artery Plaques and Risk of Recurrent Ischemic Stroke or TIA. J Am Coll Cardiol. 2022;79(22):2189-99.