Penicilina benzatina é eficaz em retardar a evolução da cardite reumática?

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Penicilina benzatina é eficaz em retardar a evolução da cardite reumática?

Os impactos da cardite reumática ao redor do mundo são intensos e, consideravelmente, negligenciados. Por diversas razões, passando por aspectos econômicos e sociais, a doença reumática e sua principal repercussão, a cardite, acabaram ficando em segundo plano nas discussões científicas sobre valvopatias e nas ações de saúde pública. Essa é uma daquelas doenças que poderiam ser completamente exterminadas do plano terrestre em casos de uma profilaxia primária bem realizada. O tratamento adequado de uma faringoamigdalite bacteriana, em tempo compatível, corta a cascata de eventos imunoinflamatórios que culminam com a cardite aguda e, no futuro, com uma possível sequela valvar crônica. Mas, pensando em medidas a curto prazo, uma vez que o indivíduo já tenha manifestado febre reumática, ele passa a ser um candidato a realizar o que chamamos de profilaxia secundária. O uso da penicilina benzatina intramuscular de 21 em 21 dias é indicado para erradicar a colonização de uma possível cepa reumatogênica e, também, para evitar novas infecções que poderiam resultar em novos surtos de febre reumática no indivíduo e, assim, retardar a progressão da cardite reumática.

Baseado nesses conceitos, foi publicado recentemente um trial que avalia o impacto do uso da penicilina G benzatina na profilaxia secundária desse grupo de pacientes acerca de uma possível regressão de uma valvopatia insipiente. Analisando o ecocardiograma de mais de 100 mil pacientes que tinham de 5 a 17 anos, aqueles que tinham alterações ecocardiográficas sugestivas de envolvimento reumático foram selecionados para serem randomizados em um grupo que receberia a profilaxia secundária e outro que apenas acompanharia clinicamente. O esquema profilático que foi realizado foi a aplicação de penicilina g benzatina a cada 4 semanas por 2 anos seguidos.

O desfecho primário pesquisado foi a progressão ecocardiográfica da lesão latente e esses casos foram divididos em três grupos: lesão pior, lesão igual ou lesão melhor. Já o desfecho secundário estabelecido foi a melhora da lesão latente ao longo de 2 anos.

Após uma reclassificação inicial, ficaram apenas 818 indivíduos em dois grupos de 409, sendo que quase 98% dos pacientes completaram o acompanhamento de dois anos, portanto, um valor elevado dando qualidade aos resultados.

Analisando os resultados do desfecho primário, 0,8% dos pacientes do grupo que recebeu penicilina apresentou progressão da lesão após 2 anos, contra 8,2% do grupo controle, sendo essa diferença, estatisticamente significativa. O NNT que foi encontrado para essa proposta de profilaxia foi que a cada 13 crianças tratadas, evitaria a evolução de uma criança para valvopatia moderada a importante. Ou seja, o uso de penicilina benzatina de fato causou retardo na evolução da cardite reumática. Sobre desfecho secundário, aproximadamente 50% dos participantes de ambos os grupos apresentaram regressão do quadro.

Pensando em segurança na aplicação da penicilina, ao decorrer do estudo, apenas 2 pacientes apresentaram complicação. Um com manifestação de anafilaxia, prontamente revertida com dose de epinefrina e outro com lesão local do nervo ciático, que regrediu após alguns meses. Já no grupo controle, 5 casos tiveram a profilaxia iniciada por lesão valvar moderada a importante, de acordo com os guidelines vigentes.

Este trial investigou a eficácia da profilaxia secundária com penicilina benzatina na modificação da história natural da cardite reumática latente em crianças e adolescentes. Foi observada uma redução significativa no risco de progressão da valvopatia no grupo de pacientes que recebeu a profilaxia.

Em ambos os grupos, mais da metade dos participantes que tiveram progressão, tiveram cardiopatia reumática moderada ou grave no final do acompanhamento de 2 anos, um achado que, sem dúvidas, sugere implicações clínicas e de saúde pública importantes.

Há uma série de barreiras para alcançar alta aderência em um ambiente do mundo real, incluindo uma falta de retenção no básico de saúde, falta de disponibilidade de medicamentos, acesso a transporte, possível estigma social, dor associada à aplicação da penicilina, e uma compreensão limitada da doença e suas repercussões.

Essas são situações que são amplamente ignoradas em um ambiente de ensaio clínico e que podem interferir na vida real.

Para aqueles que defendem o rastreio sistemático da cardiopatia reumática, a avaliação dos resultados dessa publicação pode servir de incentivo, visto o NNT encontrado, mas para aqueles que advogam o contrário, a compreensão que mais de 100 mil crianças foram rastreadas para incluir apenas 900 nesses critérios de tratamento pode refletir um gasto público elevado. Outro ponto que reforçaria uma não instituição rotineira de rastreio é que 50% desses indivíduos regrediram seus quadros sem qualquer intervenção, fazendo metade dos casos não necessitar de uso de profilaxia para esse fim. No entanto, essa regressão não necessariamente aponta para um paciente que não desenvolverá valvopatia em outro possível surto.

Assim, ainda segue a discussão sobre a necessidade desse rastreio e sua aplicabilidade clínica, mas são dados preciosos para entendermos melhor os benefícios que o uso da profilaxia secundária pode gerar em grupos de pacientes tão carentes e necessitados em uma doença com impactos socioeconômicos gigantes. Com essa publicação, foi demonstrado que, em algum grau, a profilaxia secundária pode mudar drasticamente a curva da evolução natural da cardite reumática.

Esse trial foi eleito por nossa equipe com um dos 9 mais importantes publicados na cardiologia em 2021. Quer saber quais são os outros 9? Dá uma olhada no vídeo abaixo: