Novo guideline sobre insuficiência adrenal por uso de glicocorticoides: diagnóstico

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Considere os dois cenários hipotéticos a seguir:

Caso número 01: Mulher, 38 anos, histórico de asma de longa data, encontra-se em uso de prednisolona 40 mg/dia há 14 dias, após a última crise asmática. No momento, sem sintomas respiratórios, estando totalmente assintomática.

Caso número 02: Homem, 58 anos, com histórico de artrite gotosa, última crise há 04 meses. Desde então faz uso por conta própria de dexametasona 4 mg ao dia, pois tem receio de que volte a apresentar crise álgica.

Situações como essas são muito comuns no nosso dia a dia. E sempre que nos deparamos com casos semelhantes, fazemos as mesmas perguntas: há necessidade de desmamar o corticoide para suspensão? Como realizar a retirada gradual? Quando é possível interromper o uso definitivamente de forma segura?

Respondendo a essas e outras dúvidas, foi publicado neste mês de maio o guideline da European Society of Endocrinology em parceria com a Endocrine Society sobre o diagnóstico de tratamento da insuficiência adrenal induzida por glicocorticoide. A seguir, apresentaremos as principais recomendações da primeira parte, sobre diagnóstico. Para fins didáticos, serão realizadas correlações com os casos apresentados no início desse texto.

Quando é necessário realizar o “desmame” da terapia com glicocorticoide?

Os autores recomendam não realizar o desmame em pacientes em terapia com glicocorticoides há menos que 3-4 semanas, independentemente da dose. Nesses casos, as drogas podem ser interrompidas sem testes diagnósticos, devido à baixa preocupação com a supressão do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HPA).

Portanto, no caso 01 não haveria necessidade de retirada gradual da prednisolona. Por outro lado, no caso 02, a dose do glicocorticoide deverá ser reduzida gradualmente.

Quando há uso prolongado de glicocorticoides, qual é o critério para que o desmame seja iniciado?

A retirada da corticoterapia só deve ser tentada se a doença subjacente para a qual foram prescritos os glicocorticoides está controlada e os esteroides não são mais necessários. Nestes casos, os glicocorticoides serão gradualmente reduzidos até se aproximarem da dose diária fisiológica (por exemplo, 4-6 mg de prednisona).

Como é realizada a classificação de risco de insuficiência adrenal em pacientes que fazem uso de glicocorticoides?

Critérios de baixo risco: uso de corticoides de baixa potência ( exemplo: hidrocortisona); via tópica, nasal ou oftálmica; dose baixa ; tempo de uso menor que 3-4 semanas; adulto jovem eutrófico.

Critérios de risco moderado: uso de corticoides de moderada potência (exemplo: prednisona, prednisolona); via inalatória; dose média; tempo de uso entre 4 semanas e 3 meses; presença de sobrepeso.

Critérios de alto risco: uso de corticoides de alta potência (exemplo: dexametasona, betametasona); via sistêmica ou intra-articular; dose alta; tempo de uso acima de 03 meses; idosos; pessoas com obesidade.

Como realizar o desmame?

Em geral, a redução gradual dos glicocorticoides pode ser mais rápida se a dose total diária é alta (por exemplo, superior a 30 mg/dia de prednisona). À medida em que a dose diária total se aproxima do equivalente à dose diária fisiológica (4-6 mg de prednisona) a redução deve ser mais lenta.

Os autores sugerem o esquema abaixo:

Dose em uso de prednisona (ou equivalente)

>40 mg/dia: Reduzir 5-10 mg a cada semana

20-40 mg/dia: Reduzir 5 mg a cada semana

10-20 mg/dia: Reduzir 2,5 mg a cada 1-4 semanas

5-10 mg/dia: Reduzir 1 mg a cada 1-4 semanas

5 mg/dia: Na ausência de sintomas de insuficiência adrenal ou se teste laboratorial excluiu insuficiência adrenal, reduzir 1 mg a cada 04 semanas.

Há algum teste laboratorial que possa avaliar insuficiência adrenal antes da parada completa do glicocorticoide?

Os pacientes podem ter a sua dose diminuída gradualmente enquanto são monitorados cuidadosamente para manifestações clínicas de insuficiência adrenal. Se houver sinais e sintomas de insuficiência adrenal, o regime de glicocorticoides deve ser reiniciado e não descontinuado até a recuperação do eixo hipotálamo-hipófise-adrenal ficar documentada. Mas, caso não apresente qualquer sintoma, a redução gradual prossegue descontinuação completa.

Alternativamente, os pacientes podem ser submetidos a uma avaliação do cortisol sérico matinal (amostra coletada entre 8h e 9h) para a determinação da recuperação do eixo HPA. Os pontos de corte recomendados são:

  • Cortisol sérico > 10 μg/dL : o glicocorticoide pode ser interrompido.
  • Cortisol sérico 5-10 μg/dL: manter dose fisiológica e repetir exame posteriormente. Pode ser considerado realização de teste dinâmico.
  • Cortisol sérico < 5 μg/dL: manter dose fisiológica e repetir exame após alguns meses.

Voltando para o caso clínico 02, seguindo as recomendações do consenso, o paciente deverá ser avaliado para adequado tratamento da artrite gotosa, a dexametasona convertida em dose equivalente de prednisona para seguir com desmame apropriado. Quando estiver em uso de prednisona 5 mg/dia, realizar dosagem de cortisol sérico matinal 24 horas após a última tomada da medicação.

A segunda parte do guideline apresenta recomendações sobre o tratamento desses pacientes, que será abordado em breve neste mesmo site.

Referência

Felix Beuschlein, Tobias Else, Irina Bancos, Stefanie Hahner, Oksana Hamidi, Leonie van Hulsteijn, Eystein S Husebye, Niki Karavitaki, Alessandro Prete, Anand Vaidya, Christine Yedinak, Olaf M Dekkers, European Society of Endocrinology and Endocrine Society Joint Clinical Guideline: Diagnosis and Therapy of Glucocorticoid-induced Adrenal Insufficiency, The Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism, 2024