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Inteligência Artificial pode prever Fibrilação Ventricular Refratária?
Escrito por
Humberto Graner
Publicado em
17/7/2023
E se eu fosse capaz de prever fibrilação ventricular refratária com uso de inteligência artificial, mesmo antes de aplicar os choques? Isso poderia mudar o desfecho desses pacientes?
Sabemos que a principal causa de parada cardiorrespiratória fora do hospital se deve à fibrilação ventricular. Embora seja possível reverter esta condição potencialmente letal com técnicas de ressuscitação cardiopulmonar e desfibrilação precoce, a fibrilação ventricular (FV) frequentemente se mostra refratária aos choques. A possibilidade de sobrevivência piora progressivamente quando a FV não cessa, ou mesmo recorre após choques adicionais. Em tese, prever essa resistência antes mesmo de efetuar as estratégias de desfibrilação poderia permitir intervenções para promover e estabilizar o retorno de um ritmo organizado, melhorando potencialmente a sobrevida.
Um estudo recente avaliou retrospectivamente ECGs de gravações contínuas de desfibriladores de 1376 adultos com parada cardíaca fora do hospital devido a fibrilação ventricular. Usando análises sofisticadas de formas de onda em combinação com um algoritmo de machine-learning (inteligência artificial), eles buscaram identificar aspectos que pudessem se associar à desfibrilação refratária. Este algoritmo foi desenvolvido em um "grupo de treinamento" entre esses pacientes, e então validado em um "grupo teste" separado. A forma de onda da FV foi brevemente analisada no momento da pausa usual na RCP para análise do ritmo imediatamente antes do primeiro choque, e então novamente 1 minuto após o primeiro choque, sem interromper a RCP contínua. Com base na integração dessas duas análises de ritmo, foi determinada a probabilidade de a fibrilação ventricular refratária requerer três ou mais choques.
No grupo de teste composto por 275 pacientes, o algoritmo identificou corretamente a maioria dos pacientes com FV que necessitaram de três ou mais choques (AUC 0,85) enquanto mantinha uma especificidade alta de 91%. Como esperado, quanto mais choques foram necessários, menor probabilidade de sobrevivência funcional. O algoritmo apresentou uma sensibilidade de 63%, especificidade de 91%, valor preditivo positivo de 93% e razão de verossimilhança de 6,7 para prever fibrilação ventricular refratária após o primeiro choque. Notavelmente, a inclusão de variáveis Utstein (como se a parada cardíaca tinha sido testemunhada, performance de RCP por espectador, etc) não melhorou a precisão preditiva do algoritmo, sugerindo que o segredo da refratariedade estava mesmo na forma de onda.
Essas descobertas têm potencial para mudar o tratamento durante a ressuscitação cardiopulmonar!
- Por exemplo, a capacidade de prever a refratariedade ao choque pode levar ao tratamento com antiarrítmicos mais precoce em alguns pacientes, evitar a administração potencialmente pró-arrítmica de adrenalina, ou modificar estratégias de aplicação dos choques.
- Como a determinação de fibrilação ventricular refratária é baseada apenas na análise de forma de onda em tempo real, também não requer a dedicação de um tempo valioso no local para obter informações demográficas ou antecedentes das vítimas.
- E mais: essa tecnologia de software pode ser incorporada em plataformas de desfibriladores existentes para realizar tais análises em tempo real durante a ressuscitação contínua, sem alterar a conduta usual da RCP.
Por outro lado, embora seja animador este desenvolvimento de um modelo preditivo para FV refratária, necessitamos agora de estudos que validem e avaliem o efeito dessas informações no cuidado desses pacientes com parada cardiorrespiratória.
Referência:
Coult J, Yang BY, Kwok H, Kutz JN, Boyle PM, Blackwood J, Rea TD, Kudenchuk PJ. Prediction of Shock-Refractory Ventricular Fibrillation During Resuscitation of Out-of-Hospital Cardiac Arrest. Circulation. 2023 Jun 2.Epub ahead of print. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.122.063651.