Gestação em mulheres portadoras de próteses biológicas

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Gestação em mulheres portadoras de próteses biológicas

Algumas questões envolvendo gestação em mulheres portadoras de próteses biológicas valvares ainda estão em aberto, e a literatura é escassa nesse tema principalmente em próteses valvares com disfunções. Um estudo publicado no JACC em novembro de 2022 tentou responder a algumas dessas questões.

Vamos ao desenho.

Em um estudo derivado de uma coorte prospectiva sobre gestação em cardiopatas (subdados do estudo CARPREG – Canadian Cardiac Disease in Pregnancy 1994 a 2019), foram avaliadas 125 gestações em portadoras de próteses biológicas apenas, com e sem disfunção. Estas gestantes foram divididas por grupos como próteses de coração esquerdo (aórtica e mitral) e de coração direito (pulmonar e tricúspide), e seguidas com follow-up de 6 meses após o parto.

O desfecho primário foram os eventos cardíacos adversos, o composto de morte materna; parada cardiorrespiratória; arritmia sustentada requerendo tratamento; IC esquerda ou direita; tromboembolismo cardíaco e AVC. Também foram avaliados eventos adversos fetais: morte fetal (>20 semanas); morte neonatal; síndrome do desconforto respiratório no RN; PIG / baixo peso ao nascer (percentil <10); prematuridade (IG < 37 semanas ao parto) e AVC hemorrágico no RN.

Vamos aos principais resultados.

  • Nas 125 gestações, 27% tinham válvulas de coração esquerdo (34 gestantes) e 73% de coração direito (91 gestantes).
  • Das 125 gestações, 90% ocorreram em pacientes com doença congênita e somente 10% em pacientes com diagnóstico de valvulopatia reumática.
  • Baixo número de eventos adversos maternos, foram 6 por arritmia (5 TPSV e 1 TVNS em gestante com T4F), 2 pacientes realizaram cirurgia de troca valvar durante a gestação (1 estenose mitral e 1 estenose aórtica), 1 morte materna, 9 pacientes com IC. A grande maioria das gestantes foi tratada clinicamente.
  • O tempo médio desde a cirurgia cardíaca com colocação da prótese foi de 6 anos, sendo maior nas próteses de coração direito.
  • Apenas 1 gestante usou varfarina na gestação, e 2 usaram HBPM. Já o AAS foi utilizado em 22% das gestações.
  • Apenas 3% das gestantes tinham classe funcional ruim (NYHA III ou IV)
  • Das pacientes com disfunção de válvula de coração esquerdo foram 17 pacientes com disfunção de válvula aórtica, apenas 9 de válvula mitral e 8 com ambas as válvulas
  • 27% das próteses tinham disfunção (44% das próteses de coração esquerdo e 21% das próteses de coração direito).
  • A taxa de eventos adversos maternos foi de 13% das gestações, sendo 26% nas gestantes com próteses disfuncionantes e 8% nas pacientes com próteses normofuncionantes (p=0,005).
  • Os eventos adversos maternos foram mais frequentes em quem tinha bioprótese com disfunção do lado esquerdo que do direito (47% x 5%, respectivamente, p = 0,01)
  • Não houve aumento significativo de eventos adversos maternos nas gestantes com próteses disfuncionantes à direita (11% com disfunção x 8% sem disfunção, p = 0,67).
  • A taxa de eventos adversos fetais no total das pacientes foi de 28%. Foram 38% nas pacientes com próteses disfuncionantes e 24% nas normofuncionantes (diferença estatisticamente significativa). Somente entre as gestantes com prótese do coração esquerdo com próteses disfuncionantes contra as normofuncionantes houve aumento de risco significante (60% x 16%, p=0,012).

Foram estabelecidos alguns preditores de pior evolução: disfunção de próteses de coração esquerdo (OR 20,6; IC 95% 2,4-179,1 p=0,006); idade materna > 35 anos (OR 49.8 / IC 95% 4,9 - 502,6; p=0.001); e gestantes pertencentes a um chamado “grupo de alto risco” – um composto de evento adverso materno prévio; arritmia; classe funcional ruim – NYHA III OU IV; cianose; disfunção de VE; HAP; doença aórtica avançada; início do pré-natal tardio (OR 4,50 / IC 95% 1,6-12,5; p=0,004).

Interpretação.

  1. Gestação em portadoras de próteses biológica valvares com disfunção tem maior risco que nas pacientes com prótese normofuncionante.
  2. As próteses em posição aórtica e mitral têm potencial de complicações maiores que as próteses do lado direito.

Apesar do resultado do estudo parecer obvio, quem tem disfunção de prótese evolui pior que quem não a tem! A constatação dada pela diferença de morbidade entre válvulas disfuncionantes de coração esquerdo e direito foi bem interessante.

Alguns pontos importantes não foram contemplados no estudo como as informações sobre que drogas usadas e seus efeitos na gestação, ou qual foi a via de parto predominante nas pacientes com disfunção de prótese visto que a quantidade de cesárea é considerada como marcador de risco materno também.

Outro ponto em aberto é que não foram incluídas gestantes com próteses mecânicas. A escolha do tipo de prótese em mulheres jovens com idade reprodutiva continua uma escolha difícil. Há de se pesar sempre se a paciente tem família constituída ou planos para gestação na hora da escolha do tipo de prótese, e o planejamento familiar se impõe neste momento.

Limitações do estudo como um número baixo pacientes com etiologia reumática prejudicam transportar esses dados para países em desenvolvimento como o Brasil uma vez que essa etiologia ainda deve ser a nossa maior causa de valvulopatias.

O artigo também não separa o grau de disfunção valvar, o que pode contaminar os dados dos desfechos primários, já que bioprótese mitral com disfunção leve a moderada é enquadrada como classe II-III na classificação modificada de risco materno da OMS enquanto estenose aórtica importante assintomática é classe III e estenose mitral grave e aórtica grave sintomática são classe IV (Veja também em https://d3gjbiomfzjjxw.cloudfront.net/que-cardiopatias-devem-desencorajar-a-paciente-a-engravidar/).

Já está em andamento o primeiro Registro Brasileiro de Cardiopatia e Gravidez (estudo REBECGA), que trará a luz a nossa estatística e principais complicações em gestantes cardiopatas incluindo um número maior gestação em portadoras de próteses biológicas devido a valvulopatias reumáticas.

Bioprótese à esquerdaBioprótese à direitaCom disfunção de prótese47% de eventos adversos maternos;60% de eventos adversos fetais;11% de eventos adversos maternos;21% de eventos adversos fetais;Sem disfunção de prótese5% de eventos adversos maternos;16% de eventos adversos fetais;8% de eventos adversos maternos;26% de eventos adversos fetais;

REFERÊNCIA

Wichert-Schmitt B, Grewal J, Malinowski AK, Pfaller B, Losenno KL, Kiess MC, Colman JM, Tsang W, Mason J, Siu SC, Silversides CK. Outcomes of Pregnancy in Women With Bioprosthetic Heart Valves With or Without Valve Dysfunction. J Am Coll Cardiol. 2022 Nov 22;80(21):2014-2024. (https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0735109722069510?via%3Dihub)