Será que ferro endovenoso faz diferença na IC?

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Será que ferro endovenoso faz diferença na IC?

Na insuficiência cardíaca (IC), comumente existe depleção dos estoques de ferro em virtude de distúrbios na absorção no trato gastrointestinal ou na mobilização das reservas. A deficiência de ferro se associa a transtornos no metabolismo celular que em última análise prejudicam o desempenho do miócito e contribuindo para a piora e progressão da doença1. (Mais detalhes sobre este assunto, se liga neste nosso resumo: https://d3gjbiomfzjjxw.cloudfront.net/quando-indicar-suplementacao-de-ferro-na-insuficiencia-cardiaca-e-eritropoetina/). Nesse sentido, será que faria sentido a reposição de ferro endovenoso na IC independente da presença de anemia? Esta questão foi abordada pelo estudo IRONMAN, apresentado no Congresso da American Heart Association (ESC) 2022, em Chicago, e publicado simultaneamente no periódico The Lancet2. O estudo incluiu 1137 pacientes com IC e fração de ejeção ≤ 45%, evidência de déficit de ferro (isto é, ferritina < 100 mcg/L ou saturação de transferrina < 20%), e com hospitalização recente por IC ou BNP elevado. Os pacientes foram randomizados para a reposição de ferro endovenoso com derrisomaltose férrica (dose ajustada pelo peso e nível de hemoglobina) versus grupo controle. A resposição de ferro era feita a cada 4 meses, visando a manter a ferritina acima de 100 mcg/L e a saturação de transferrina acima de 25%. O desfecho primário do estudo foi o composto de morte cardiovascular ou hospitalização por IC. Qualidade de vida e teste de caminhada de 6 minutos foram desfechos secundários. O estudo era aberto, ou seja, tanto os pacientes como os médicos e equipe assistencial sabiam para qual grupo os pacientes tinham sido randomizados. Por conta disso, o desfecho primário do estudo era avaliado por um comitê de eventos clínicos (também chamado de comitê de adjudicação), cujos membros não sabiam a que grupo os pacientes tinha sido randomizados. Com isso, procura-se minimizar o viés de aferição do desfecho. (Quer aprender melhor sobre isto? Se liga no nosso Curso de Medicina Baseada em Evidências: https://lp2.cardiopapers.com.br/mbe-matriculas-perpetuo-vitrine/)E quais foram os resultados? A mediana de idade dos pacientes foi de 73,3 anos, a FEVE mediana foi de 34% e um terço dos pacientes tinham histórico de hospitalização recente por IC. Ao final de um seguimento mediano de 2,7 anos, o uso do ferro endovenoso não resultou em uma redução estatisticamente significativa no desfecho primário de morte CV ou hospitalização por IC (22,4 eventos por 100 pacientes-anos no grupo derrisomaltose férrica versus 27,5 eventos por 100 pacientes-ano no grupo controle; razão de risco [RR] 0,82; intervalo de confiança 95% 0,66-1,02; P = 0,070). O uso da derrisomaltose férrica não resultou em melhora de qualquer dos componentes individuais do desfecho primário, seja hospitalização por IC (RR 0.80; intervalo de confiança 95% 0,62-1,03), seja mortalidade CV (RR 0,86; intervalo de confiança 95% 0,67-1,10). Também não houve diferença estatisticamente significativa a favor do ferro endovenoso nos escores de qualidade de vida em 20 meses, nem no teste de caminhada de 6 minutos. A derrisomaltose férrica foi bem tolerada, sem diferença entre os grupos na taxa de eventos adversos, inclusive sem aumento na ocorrência de hospitalizações por infecção.E então, como estes resultados influenciam a nossa prática? Apesar de estudos iniciais terem sugerido a melhora de sintomas e qualidade de vida, assim como ocorreu no estudo AFFIRM AHF, com carboximaltose férrica, o uso do ferro endovenoso não resultou em melhora no desfecho primário de morte CV ou hospitalização por IC3. Infelizmente, ambos os estudos foram impactados pela pandemia de COVID-19, de tal modo que, em análises de sensibilidade excluindo o período da pandemia, tanto no AFFIRM como no IRONMAN o uso do ferro endovenoso na IC se associou com redução do desfecho primário. Entretanto, baseado nestes dois estudos, ainda não temos evidência definitiva de que o ferro endovenoso possa melhorar o prognóstico de pacientes com IC. Estudos futuros devem definir o papel desta terapia promissora com ferro endovenoso com forma de reduzir complicações graves na IC.Nota do editor: A conclusão do estudo aqui escrita é diferente daquela publicada no manuscrito no jornal The Lancet. Nós do Cardiopapers acreditamos que a análise crítica da literatura científica é fundamental na formação e educação médica continuada.REFERÊNCIAS

  • Ghafourian K, Shapiro JS, Goodman L, Ardehali H. Iron and Heart Failure: Diagnosis, Therapies, and Future Directions. JACC Basic Transl Sci. 2020 Mar 23;5(3):300-313.
  • Kalra PR, Cleland JGF, Petrie MC, et al. Intravenous ferric derisomaltose in patients with heart failure and iron deficiency in the UK (IRONMAN): an investigator-initiated, prospective, randomised, open-label, blinded-endpoint trial. The Lancet [epub ahead of print] (https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(22)02083-9/fulltext)
  • Ponikowski P, Kirwan BA, Anker SD, et al. Ferric carboxymaltose for iron deficiency at discharge after acute heart failure: a multicentre, double-blind, randomised, controlled trial. Lancet 2020; 396: 1895–904.