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Endocardite infecciosa em usuários de drogas endovenosas: revisão do tema
Escrito por
Tiago Bignoto
Publicado em
2/6/2022
O abuso de drogas injetáveis tem se mostrado como uma verdadeira epidemia, principalmente nos casos das medicações opioides nos países considerados desenvolvidos. Em 2021, pela primeira vez nos Estados Unidos, ocorreram mais de 100 mil mortes por overdose e além dos impactos psicossociais relacionados aos transtornos psiquiátricos da dependência química, uma patologia cardiovascular de elevada morbimortalidade está intimamente relacionada a esses eventos, a endocardite infecciosa. O que você precisa saber sobre endocardite infecciosa em usuários de drogas endovenosas? É o que vamos ver neste post.
Embora os dados atuais nos mostrem que a mortalidade é menor em infecções do lado direito do coração, típico dos usuários de drogas, a avaliação isolada apenas dos desfechos agudos não representa a realidade, pois o impacto na sobrevida ainda é sentido com quadros de infecções repetidas e retorno frequente ao abuso de substâncias. No geral, são pacientes mais jovens e com menos comorbidades associadas, quando comparados aos casos de outros indivíduos com presença de próteses valvares e doença do lado esquerdo, o que acaba por influenciar nesses dados dos desfechos agudos.
O diagnóstico nesse contexto é tão desafiador quanto nos casos considerados não relacionados com o uso de drogas injetáveis. O rastreio inicial com ecocardiografia é mandatório, sendo que a sensibilidade e especificidade da complementação transesofágica é maior. Vale ressaltar que as endocardites relacionadas ao uso de drogas endovenosas ocorrem em maior prevalência do lado direito e a abordagem da valva tricúspide pela ecocardiografia transtorácica muitas vezes nos traz imagens bem satisfatórias para o diagnóstico. No entanto, diante de qualquer dúvida nas imagens ou mesmo na suspeita de complicações infecciosas, a complementação com o acesso transesofágico não pode ser negligenciado. Outros métodos diagnósticos por imagem podem ser usados da mesma forma que nos casos gerais de endocardite, sendo ressaltado a boa acurácia para o PET (pósitron emission tomography; tomografia por emissão de pósitrons) scan em casos em que temos envolvimento de próteses valvares.
Um grande desafio nesses pacientes é entender se estaríamos diante de uma recorrência de endocardite prévia tratada ou se seria um novo quadro de infecção, visto o constante retorno ao uso das substâncias e bacteremias recorrentes. Há uma tentativa de diferenciação de acordo com o tempo do último episódio, trazendo evidências de que em menos de 6 meses mais provavelmente se trataria de uma reativação de tratamento prévio, mas como são possíveis abusos em curto espaço de tempo após o evento índice, essa diferenciação diagnóstica acaba se perdendo.
Um aspecto interessante a se ressaltar é a baixa aderência ao tratamento antimicrobiano completo nesse grupo de pacientes. O desafio de manter esse perfil de paciente internado por longos períodos acaba se refletindo em alta a pedido e interrupção inadequada do tratamento, trazendo ainda mais comorbidade a essa evolução já no médio prazo. Nesse contexto de terapia antimicrobiana, o direcionamento para cobertura é bem estabelecido nas diretrizes mais importantes, devido à elevada prevalência de determinada microbiota nesses pacientes. No entanto, o resultado de hemoculturas e a avaliação da sensibilidade antimicrobiana acabam por guiar, em última análise, a escolha mais adequada da cobertura a ser proposta.
Um desafio a mais é a interação dos antimicrobianos com os diversos medicamentos relacionados à dependência química, que podem trazer riscos de reações indesejadas. Desde necessidade de elevadas doses para obter níveis séricos interessantes, até a alargamento do QT ou hepatotoxicidade são preocupações pertinentes nesse grupo de pacientes.
Endocardite Infecciosa é uma doença que por si só apresenta elevada morbidade e a necessidade de abordagem cirúrgica ao longo dos primeiros meses após o evento infeccioso é algo próximo de 50%. Nesse contexto, os pacientes com endocardite relacionada a abuso de drogas venosas costumam ter uma evolução pior, por ter uma doença mais invasiva nos tecidos acometidos, secundário à virulência das bactérias e mais, por serem frequentemente casos de reinfecção ou mesmo reabordagem, o que agrega alto risco inerente ao procedimento.
O implante de prótese do lado direito deve ser evitado ao máximo, pois como é comum a reincidência do abuso, a presença desse dispositivo nessa topografia aumenta ainda mais os riscos de novos eventos infecciosos. Diante disso, diversas técnicas que usam material mais próximo do fisiológico são tentadas, mas ainda com resultados conflitantes.
Um avanço recente nesse grupo de pacientes, que tem com o objetivo reduzir a carga de bactérias e de em algumas vezes prorrogar o tempo até a necessidade de cirurgia é a aspiração venosa da vegetação. Com necessidade de anestesia geral e instalação de ECMO para obter grandes acessos venosos, a vegetação poder ser aspirada o que pode auxiliar no controle do processo infeccioso. Esse procedimento ainda não é difundido e apresenta ainda uma elevada taxa de complicações, tendo sua indicação bem individualizada.
Assim, compreender o paciente portador de endocardite no contexto de uma dependência química endovenosa é complexo e a abordagem multidisciplinar é obrigatória. Mesmo assim, as taxas de recorrência e desfechos negativos permanecem altos, mas a criação de centros especializados nesse tipo de paciente pode, em determinados casos, ser decisivo positivamente para os desfechos.
Referência:
Yucel E, Bearnot B, Paras ML, Zern EK, Dudzinski DM, Soong CP, Jassar AS, Rosenfield K, Lira J, Lambert E, Wakeman SE, Sundt T. Diagnosis and Management of Infective Endocarditis in People Who Inject Drugs: JACC State-of-the-Art Review. J Am Coll Cardiol. 2022; 79(20): 2037