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Já ouviu falar na Desfibrilação Sequencial Dupla para FV refratária? É melhor que a técnica padrão?
Escrito por
Gustavo Bregagnollo
Publicado em
2/12/2022
A ressuscitação cardiopulmonar (RCP) é talvez uma das manobras mais simbólicas da Medicina, já que o reanimador está assumindo, literalmente, o papel do coração do paciente na Parada Cardiorrespiratória (PCR). Apesar de ser indiscutível a importância da compressão torácica de alta qualidade, um dos momentos em que há maior chance de se conseguir reestabelecer a circulação espontânea da vítima é a realização de desfibrilação em ritmo passível de choque, como uma Fibrilação Ventricular (FV), por exemplo. Todavia, há situações em que a FV torna-se refratária e para tentar resolvê-la, dentre as estratégias existentes, há duas que desejamos destacar: desfibrilação sequencial dupla (DSED) e a Mudança Vetorial (VC). Vale lembrar que atualmente o protocolo ACLS (Advanced Cardiovascular Life Support)(1), da American Heart Association, orienta desfibrilação única, seguida de reinício imediato de compressão, com reavaliação do ritmo apenas no início próximo ciclo, além do uso de medicações antiarrítmicas. Dessa forma, embora a DSED não seja exatamente uma novidade, a última atualização do ACLS (2020) não recomenda a DSED em detrimento à estratégia tradicional pela falta de respaldo científico que suporte seu uso rotineiro, além ainda de haver outras técnicas em princípio mais simples e de menor risco envolvido, como a própria VC. Explorando essa dúvida, temos um artigo recentemente publicado no The New England Journal of Medicine (2), que se trata de um estudo randomizado, denominado DOSE VF, comparando a DSED e VC com a estratégia tradicional de desfibrilação em FV refratária, com intenção de avaliar qual ou quais das técnicas obtinham maior sobrevida na alta hospitalar e, secundariamente, qual era mais efetiva na cardioversão, no retorno da circulação espontânea (RCE) e no prognóstico neurológico na alta hospitalar. E aí? Acham que o jogo vai virar para as técnicas DSED e VC? Ou a tradicional vai consolidar sua posição??
Primeiramente, antes que pensem que a técnica do DSED se baseia simplesmente em duplicar a técnica usual, ou seja, aplicar choque, carregar de novo e aplicar outro na sequência, saibam que DSED utiliza dois desfibriladores : um com pás antero-laterais (posição padrão) e outro com as pás antero-posterior, sendo que os choques são dados em sequência rápida (em geral, menos de 1 segundo de intervalo), um após o outro, ou seja, o uso de pás adesivas é praticamente mandatório. Já a estratégia VC haveria apenas a mudança na posição das pás de antero-lateral (padrão) para antero-posterior, sob a alegação de assim conseguir desfibrilar regiões que não estavam sendo atingidas com o posicionamento usual. Como o objetivo agora não é explicar em detalhes as técnicas, mas somente esclarecer os leitores, vamos retornar ao artigo.
O estudo ocorreu no período de março de 2018 a maio de 2022, realizado por seis serviços paramédicos do Canadá, com todos socorristas adequadamente treinados para aplicar o protocolo ACLS, que incluíram um total de 405 pacientes, alocados aproximadamente em um terço em cada grupo: 136 no grupo de desfibrilação tradicional, 144 no grupo VC e 125 no grupo DSED. Periodicamente cada serviço era randomizado para um dos três tipos de abordagem e a cada 6 meses eram novamente randomizados, sendo que todos serviços aplicaram pelo menos uma vez cada estratégia. Estavam previstos 930 pacientes, entretanto o monitoramento de segurança obrigou interrupção precoce do estudo devido as preocupações acerca da pandemia por COVID-19. Os pacientes elegíveis eram de atendimento extra-hospitalar, com pelo menos 18 anos de idade, atendidos com FV refratária como causa presumida da PCR. Essa arritmia foi definida como aquela cujo ritmo inicial era FV ou Taquicardia Ventricular sem pulso, que persistia após três ciclos utilizando a técnica tradicional de desfibrilação. Após esse terceiro ciclo, os paramédicos passavam a utilizar o método ao qualseu serviço foi randomizado, o qual seria aplicado em todos ciclos subsequentes, quando indicado. Foram excluídos os atendimentos por PCR de outras causas, como traumáticas, afogamento, overdose de drogas, hipotermia, enforcamento e os pacientes sem indicação de RCP. A idade média foi de 63,6 anos, com predomínio de homens (84,4%). Vamos agora saciar a curiosidade de vocês com os resultados.
O tempo entre a ligação ao serviço até a primeira desfibrilação e o número de choques necessários para obter o primeiro Retorno a Circulação Espontânea (RCE) foram similares nos três grupos: cerca de 10 minutos e 5 choques, respectivamente. Mas, os grupos que receberam DSED ou VC tiveram uma sobrevida maior que aqueles que receberam a terapia tradicional. Não houve diferença de qualidade do atendimento ou da RCP entre os grupos, logo, a única variante considerável foi mesmo a abordagem da arritmia refratária. Falando mais especificamente dos desfechos secundários, a DSED conseguiu interromper a FV refratária em 84% dos casos, a VC 79,9%, enquanto a técnica usual o fez em 67,6% das vezes; a RCE foi atingida em 46,4% no grupo DSED, contra 26,5% no atendimento tradicional ; a sobrevida com bom prognóstico neurológico foi atingido em 27,4% com DSED versus 11,2% na desfibrilação usual. Nesses dois últimos desfechos citados, o VC obteve 35,4% e 16,2%, respectivamente, mas não atingiu intervalo de confiança estatisticamente desejável.
Dessa forma, os autores discutem que a estratégia DSED aparenta ser superior (sobrevida, resolver a FV refratária, restabelecer RCE e melhor prognóstico neurológico na alta hospitalar), enquanto que a VC demonstrou um resultado confiável apenas na sobrevida e na resolução da arritmia. Entretanto, embora a DSED pareça ser, portanto, a melhor escolha, a necessidade de se ter dois desfibriladores pode ser o maior empecilho para os serviços de atendimento médico e, portanto, a VC parece ser uma alternativa mais viável com resultados aparentemente superiores à desfibrilação usual. Quando os resultados deste estudo são confrontados com a literatura, eles se mostram contrastantes, pois os estudos anteriores falharam em demonstrar benefício das estratégias DSED e VC(3-5). Entretanto, apontam que esses estudos não tinham um grupo controle, nem tinham um adequada verificação sobre a qualidade dos atendimentos prestados. Os autores ainda discutem que seus resultados sugerem que, de qualquer maneira, a presença de um vetor de desfibrilação para o sentido antero-posterior parece exercer um papel importante na resolução da FV refratária, pois como é uma arritmia originada no Ventrículo Esquerdo, que é uma estrutura majoritariamente posterior, essa nova orientação vetorial conseguiria desfibrilar adequadamente as regiões que, pela técnica tradicional (antero-lateral), receberiam uma carga reduzida e, portanto, teriam maior chance de reiniciar ou permanecer em FV. Lembrem-se que a DSED também contempla essa mudança vetorial, pois utiliza pás antero-lateral e antero-posterior, e ainda há um adicional energético pela realização de dois choques, fato que os próprios autores ressaltam como possível causa da aparente superioridade da DSED em relação a VC e a técnica padrão.
Como limitações do estudo, apontam que a redução do número de randomizações (de 930 para 405) pode ter superestimados os resultados. Como exemplo, bastaria 1 único paciente no grupo VC não sobreviver para que o desfecho primário para esse grupo não fosse estatisticamente significativo e para o grupo DSED esse número seria de apenas 9. Além disso, o estudo limitou-se na verificação dos desfechos na alta, não avaliando o tempo de internação ou evolução após esse período.
Devemos empregar esses resultados na nossa prática médica?
Por se tratar de atendimento em PCR, ou seja, situação extrema e limítrofe entre vida e morte, o melhor é nos concentrar no que temos certeza de benefício: iniciar rapidamente o atendimento, desfibrilação precoce nas situações corretas e compressões torácicas de alta qualidade. Tudo o que se faz – ou se tenta – fora de um protocolo nesse momento tende a ampliar as interrupções ou conturbar as rotinas, que podem comprometer a qualidade do atendimento e, portanto, também dos desfechos. Dessa forma, esses resultados poderiam até respaldar uma mudança de protocolo institucional, mas sem dúvida demandaria um adequado treinamento de equipes. Esse estudo é muito interessante para nos dar um vislumbre do que pode estar por vir, mas em nosso cotidiano provavelmente o melhor é adotar conhecimentos mais homogeneizados, seguindo as atualizações periódicas do ACLS. Além disso, considerando o contexto brasileiro, a necessidade de dois desfibriladores ou simplesmente a relativa baixa disponibilidade de pás adesivas podem limitar ou até atrapalhar a fluidez do manejo de uma RCP na tentativa de se aplicar DSED ou VC.
(Quer saber mais sobre emergências? Confira em: https://d3gjbiomfzjjxw.cloudfront.net/5-minutos-de-fibrilacao-ventricular/ )
- Panchal AR, Bartos JA, Cabañas JG, Donnino MW, Drennan IR, Hirsch KG, et al. Part 3: Adult Basic and Advanced Life Support: 2020 American Heart Association Guidelines for Cardiopulmonary Resuscitation and Emergency Cardiovascular Care. Circulation. 2020;142(16_suppl_2):S366-S468.
- Cheskes S, Verbeek PR, Drennan IR, McLeod SL, Turner L, Pinto R, et al. Defibrillation Strategies for Refractory Ventricular Fibrillation. N Engl J Med. 2022;387(21):1947-56. (https://www.nejm.org/doi/10.1056/NEJMoa2207304?url_ver=Z39.88-2003&rfr_id=ori:rid:crossref.org&rfr_dat=cr_pub%20%200pubmed)
- Deakin CD, Morley P, Soar J, Drennan IR. Double (dual) sequential defibrillation for refractory ventricular fibrillation cardiac arrest: A systematic review. Resuscitation. 2020;155:24-31.
- Emmerson AC, Whitbread M, Fothergill RT. Double sequential defibrillation therapy for out-of-hospital cardiac arrests: The London experience. Resuscitation. 2017;117:97-101.
- Delorenzo A, Nehme Z, Yates J, Bernard S, Smith K. Double sequential external defibrillation for refractory ventricular fibrillation out-of-hospital cardiac arrest: A systematic review and meta-analysis. Resuscitation. 2019;135:124-9.