Compartilhe
Você sabe definir e classificar a insuficiência cardíaca?
Escrito por
Humberto Graner
Publicado em
5/8/2022
Se você continuou a leitura para além do título acima, é porque deve estar intrigado sobre seus conhecimentos diagnósticos sobre a insuficiência cardíaca (IC).
Na edição de 1974 do livro Harrison’s - Princípio de Medicina Interna, Braunwald definia a insuficiência cardíaca com base em características clínicas, e ainda reconhecia as limitações do conhecimento da função miocárdica à ocasião.
“Insuficiência cardíaca pode ser definida como a condição na qual uma anormalidade da função miocárdica é responsável pela inabilidade dos ventrículos de fornecer quantidade adequada de sangue aos tecidos em repouso ou durante a atividade normal”. Harrison’s Principle of Internal Medicine, 7th Ed, 1974.
De lá para cá, a IC foi uma das áreas na ciência cardiovascular que mais avançaram. Porém, o que temos visto é que mesmo tratamentos eficazes, capazes de mudar a história natural da doença, não necessariamente funcionam para todos os pacientes, ou não são adequadamente prescritos para aqueles que verdadeiramente se beneficiariam.
Era óbvia a necessidade de uma definição universal de insuficiência cardíaca que fosse clinicamente relevante, simples, abrangente, aplicável globalmente, e que permitisse a todos as partes interessadas identificar, prognosticar e orientar melhor os tratamentos disponíveis. Diante disso, um comitê composto por membros das principais sociedades de insuficiência cardíaca do mundo, de 14 países e 6 continentes, propuseram uma nova Definição e Classificação Universal da Insuficiência Cardíaca (IC).
Então, qual é a nova definição universal da insuficiência cardíaca?
A definição universal proposta descreve a IC como uma síndrome clínica com sintomas e/ou sinais causados por uma anormalidade cardíaca estrutural e/ou funcional e corroborada por níveis elevados de peptídeo natriurético e/ou evidência objetiva de congestão pulmonar ou sistêmica.
E os estágios da doença?
Os estágios da IC foram revisados para enfatizá-la como uma síndrome clínica:
- Estágio A – Pacientes com fatores de risco para desenvolverem IC
- Estágio B – Pré-Insuficiência Cardíaca (novo!)
- Estágio C – IC sintomática
- Estágio D – IC avançada
E onde entra a fração de ejeção?
Uma classificação revisada da IC pela fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) também foi proposta e é a seguinte:
- IC com fração de ejeção reduzida (ICFEr) – IC sintomática com FEVE ≤40%
- IC com fração de ejeção levemente reduzida (ICFElr) – IC sintomática com FEVE 41-49% (anteriormente rotulada como IC com fração de ejeção intermediária)
- IC com fração de ejeção preservada (ICFEP) – IC sintomática com FEVE ≥50%
- IC com fração de ejeção melhorada (ICFEm) – esta é uma nova classificação, que leva em conta o paciente com IC sintomática e FEVE basal ≤40%, mas que apresenta no curso da doença um aumento ≥10% na FEVE basal ou uma segunda medida de FEVE >40%.
Esse último conceito (IC melhorada) é de fundamental importância, pois sabe-se que aqueles com FE melhorada ainda podem estar em risco de disfunção ventricular recorrente e descompensação, principalmente se o tratamento medicamentoso for interrompido (checa mais sobre isso neste nosso post: https://d3gjbiomfzjjxw.cloudfront.net/insuficiencia-cardiaca-com-fracao-de-ejecao-melhorada-e-agora/). Também vale à pena apontar as limitações de se classificar os pacientes com IC com base apenas na FE, pois esta é apenas uma caracterização e, por si só, não representa a fisiopatologia subjacente de um processo específico da doença.
Qual a importância de se ter um critério único e universal para IC?
- Uniformiza a linguagem e o entendimento entre as diversas partes interessadas: médicos, pesquisadores, legisladores, e fontes pagadoras de serviços de saúde.
- Mais do que a clássica definição de uma “síndrome”, a adoção de critérios objetivos aumenta substancialmente a sensibilidade e especificidade para o diagnóstico, permitindo identificar melhor esses pacientes.
- A classificação da IC por estágio oferece aos médicos a oportunidade de se comunicar com os pacientes de maneira mais prática e fornece elementos para a tomada de decisão mais assertiva, desde a fase “pré-clínica” até os estágios avançados da doença.
- Reconhecer precocemente a doença implica em maior precisão das medidas de qualidade que impactam no cuidado ao paciente com IC.
Por fim, o documento reforça que a linguagem é importante na comunicação entre pares e entre estes e seus pacientes. Há também outros termos-chave introduzidos por esse comitê que merecem destaque. Por exemplo, devemos falar em "IC persistente" em vez de "IC estável", porque mesmo o paciente “compensado”, existem oportunidades para se otimizar o tratamento e evitar deterioração clínica.
Da mesma foram, "IC em remissão" é definida com sendo pacientes que apresentam resolução de seus sintomas e/ou função cardíaca, sem esquecer que a IC é conhecida por recidivar com frequência. Também é importante que reforcemos junto aos pacientes que a melhora não significa que a IC está curada.
Por fim, esta nova classificação, e mesmo as mudanças semânticas propostas, oferecem oportunidades para uma melhor comunicação e envolvimento do cardiologista e do paciente, reforçando o continuum da doença e as possibilidades de intervenção.
Referências:
- Bozkurt B, Coats AJ, Tsutsui H, et al. Universal Definition and Classification of Heart Failure: a report of the Heart Failure Society of America, Heart Failure Association of the European Society of Cardiology, Japanese Heart Failure Society and Writing Committee of the Universal Definition of Heart Failure. J Card Fail. 2021:S1071-9164(21)00050-6. (https://www.onlinejcf.com/article/S1071-9164(21)00050-6/fulltext)
- Marcondes-Braga FG, Moura LAZ, Issa VS, Vieira JL, Rohde LE, Simões MV, et al. Atualização de Tópicos Emergentes da Diretriz de Insuficiência Cardíaca – 2021. Arq Bras Cardiol. 2021;116(6):1174-1212 https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC8288520/