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Coronavírus pode causar miocardite?
Escrito por
Jefferson Vieira
Publicado em
10/2/2021
Aproximadamente um em cada três pacientes hospitalizados por COVID-19 apresenta algum grau de injúria miocárdica, evidenciado pela elevação nas concentrações de troponina de alta sensibilidade. As condições clínicas associadas à injúria miocárdica incluem infarto do miocárdio, miocardite e cardiomiopatia de estresse, estando associada a piores desfechos mesmo após ajuste para fatores de risco relevantes.
A suspeita clínica de miocardite é comum em pacientes que se apresentam com infecções virais e concentrações elevadas de troponina na ausência de doença coronariana obstrutiva. Potenciais mecanismos propostos na patogênese da miocardite por SARS-CoV-2 incluem destruição direta de miócitos, endotelite e hiperativação imunológica (também chamada de “tempestade de citocinas”). No entanto, como o quadro clínico de miocardite pode incluir sintomas vagos ou inespecíficos, boa parte dos casos publicados na literatura são na verdade um diagnóstico presuntivo de miocardite por COVID-19 com base em evidências circunstanciais, mas sem confirmação histológica ou de genoma viral.
Formalmente, o diagnóstico de miocardite por SARS-CoV-2 requer a identificação histológica de miocardite ativa (com infiltrado inflamatório linfocítico, eosinofílico, neutrofílico, de células gigantes, granulomatoso ou misto) associado à necrose do miócito de origem não isquêmica, identificação do genoma SARS-CoV-2 ou de partículas virais em miócitos, além da exclusão de vírus cardiotrópicos conhecidos, como o enterovírus ou o parvovírus B19. Na prática, entretanto, a biópsia endomiocárdica (BEM) costuma ser indicada somente para casos de insuficiência cardíaca de início recente com comprometimento hemodinâmico ou arritmias ventriculares novas, não sendo usada rotineiramente para diagnosticar miocardite.
Uma recente revisão da literatura descrevendo análises patológicas dos corações de indivíduos com COVID-19 submetidos a autópsia ou BEM sugeriu que a miocardite por SARS CoV-2 é incomum, ocorrendo em 4,5% dos casos altamente selecionados. Outro estudo dos mesmos pesquisadores comparou cortes histológicos de miocárdio de 5 indivíduos que morreram por causas traumáticas com as de 5 indivíduos que morreram de COVID-19 para avaliar a natureza das células inflamatórias encontradas nos respectivos tecidos. Em geral, não houve diferença no número total de células T e macrófagos nos dois grupos, incluindo CD3 que são típicas de miocardites. De acordo com os autores, a baixa expressão da enzima conversora da angiotensina-2 nas células do miocárdio poderia explicar o tropismo reduzido do SARS CoV-2 pelo coração. Outra situação de injúria miocárdica que acompanha aumento na troponina, anormalidades eletrocardiográficas e coronárias normais que deve ser considerada é a síndrome de Takotsubo, ou cardiomiopatia de estresse. Nesses casos, os níveis de troponina e os sinais de edema na ressonância magnética cardíaca podem ser bastante similares aos encontrados na miocardite, e o diagnóstico diferencial pode ser desafiador.
A BEM apresenta riscos inerentes, como uma incidência de 1,2% de complicações, sendo 0,42% de perfurações e 0,03% de óbitos. Assim, o procedimento só deveria ser recomendado nos casos em que os benefícios das informações obtidas superassem os riscos potenciais do procedimento. Considerando que não temos dados que sustentem a eficácia de terapias específicas para miocardite por COVID-19, o momento ideal e os critérios para realização de BEM nesses casos permanecem incertos.