Chagas e Açaí: existe relação?

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Chagas e Açaí: existe relação?

Existe relação entre Doença de Chagas e Açaí? A Doença de Chagas foi descoberta em 1909 pelo brasileiro Carlos Chagas, que não apenas delineou o ciclo total de propagação, assim como também as manifestações clínicas do primordial caso em seres humanos. A transmissão do Trypanosoma cruzi ocorre por meio de vetores insetos – Triatoma infestans, Rhodnius prolixus e Triatoma dimidiata. Também pode ocorrer por transfusão de sangue contaminado, de maneira vertical (mãe-filho), por transplante de órgãos, e via oral (por meio de alimentos contaminados com triatomíneos infectados ou por suas fezes). Nas últimas décadas, foram identificados alguns surtos de Doença de Chagas Aguda (DCA) associadas à ingestão de polpa de açaí possivelmente contaminada com Trypanosoma cruzi.

Com base nos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), a ocorrência de casos de DCA tem sido alvo da vigilância epidemiológica, segundo a definição de “caso” do Ministério da Saúde do Brasil. Entre 2007 e 2019, foram confirmados 3.060 casos de DCA (média de 222 casos/ano) em 219 municípios. Já em 2020, foram confirmados 146 casos, principalmente na região Norte, com letalidade de 2% (3/146 - todos os óbitos no estado do Pará). A forma de transmissão mais frequentemente notificada no país nos últimos 15 anos em casos de DC aguda tem sido a via oral, fato revelador que têm induzido mudanças do perfil epidemiológico da doença na última década.

Nestes casos, observou-se uma maior taxa de mortalidade durante a fase aguda, quando contrastada com o os casos transmitidos por vetores. De nota, foram identificados pequenos nódulos alinhados, com uma aparência semelhante a contas de rosário, os quais são conhecidos como epicardite moniliforme. Ainda que uma pancardite genuína ocorra, frequentemente as válvulas cardíacas são preservadas. Preocupa, muitas vezes, a miocardite desencadeada pelo T. cruzi após transmissão oral, frequentemente revelando-se com manifestações subclínicas. A teoria mais aceita para o pior prognóstico na transmissão por via oral é uma maior quantidade de parasitas ingeridos, facilitada pela maior penetração do parasita pela mucosa gastrointestinal.

A ingestão de T. cruzi com polpa de açaí NÃO É MITO: ela decorre da maceração acidental de triatomíneos infectados ou em equipamentos domésticos e/ou utensílios utilizados durante a preparação do alimento. Além disso, dados da literatura evidenciam a sobrevivência (in vitro) do protozoário em alimentos e bebidas contaminados experimentalmente, como a polpa do açaí, mostrando que esse alimento permite a sobrevivência e a virulência deste parasita sob diferentes temperaturas de conservação.

Certo, mas por que nem todos que tomam açaí desenvolvem Doença de Chagas?

Mesmo havendo uma relação dose-dependente, a DCA pode se manifestar em diferentes dosagens e não apenas quando há uma alta concentração parasitária. É fundamental considerar a eficácia com que o parasita infecta a mucosa gástrica e a importância das glicoproteínas específicas (como gp30, gp82 e gp90) em cada parasita. Não se trata apenas da quantidade de T. cruzi na contaminação, mas também do fator de virulência e das características genéticas do hospedeiro.

Existem processos que podem inativar o T. cruzi nos alimentos, mas eles podem não estar sendo rigorosamente seguidos. No caso da polpa de açaí, processos como pasteurização ou branqueamento podem assegurar a inativação do parasita. O branqueamento mantém a textura e cor original do açaí, mas pode levar à perda de sabor e nutrientes devido ao cozimento. A pasteurização, que envolve o aquecimento do açaí entre 80 a 90°C e posteriormente congelá-lo até -20°C, também é eficaz contra o parasita. No entanto, essa técnica pode alterar a cor natural do açaí e requer equipamentos especiais para um rápido congelamento. Vale destacar que somente resfriar ou congelar, sem a etapa de aquecimento, não é suficiente para prevenir a transmissão oral pelo T. cruzi.

A doença de Chagas necessita ser LEMBRADA como uma enfermidade transmitida através da ingestão de alimentos. A contaminação do açaí apresenta uma preocupação relevante para a saúde pública, considerado um fator de risco específico para essa transmissão oral. Ainda, há outras fontes possíveis de contaminação alimentar, incluindo a ingestão de carne crua de animais selvagens infectados, que podem abrigar o parasita em pseudocistos e tripomastigotas sanguíneos, além de qualquer suco de fruta natural preparado sob condições inadequadas de manipulação. Vale ressaltar que, até o presente momento no Brasil, não existe regulamentação que exija a pasteurização do açaí antes de sua venda, o que acarreta na ausência de garantias quanto à segurança do produto consumido.

É fundamental implementar uma vigilância ativa em relação aos casos agudos de doença de Chagas para aprimorar a identificação da doença. Paralelamente, é de extrema importância oferecer um cuidado apropriado para os casos graves da doença transmitida por meio de alimentos, incluindo sua pesquisa ativa em casos de Síndromes Febris. Além disso, é essencial desenvolver uma metodologia para detectar diretamente o parasita T. cruzi nos alimentos, bem como introduzir tecnologias que possam assegurar a segurança dos alimentos oferecidos ao público, como a pasteurização ou o branqueamento de polpas de frutas e sucos.

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